terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Quinta Essentia na Oficina de Música

.

Sábado na hora do almoço fui lá conferir o concerto do quarteto de flautas Quinta Essentia. E estava certo o palpite que dei aqui - realmente o concerto foi muito interessante.

Antes de falar do grupo, é preciso falar um pouco desse instrumento. A flauta doce é, provavelmente, mais conhecida no Brasil como um instrumento usado como opção de iniciação musical. É muito comum algum pai querer colocar o filho numa escola de música para estudar, por exemplo, piano, e receber de alguém a recomendação de que o filho comece pela flauta doce. Assim, o instrumento ficou um pouco estigmatizado. É visto como instrumento limitado, de poucos recursos e voltado para o uso em aulas para crianças, quase como um brinquedo.

Mas a flauta doce é muito mais do que isso. É sim uma ótima opção de iniciação musical mas, como aconteceu comigo, muitos que começam na flauta perdem o interesse e passam para outro instrumento supostamente com mais recursos - no meu caso o violão. Acontece que a flauta doce foi um dos principais instrumentos musicais da Idade Média a fins do século XVIII. Quando a cultura e a música passaram a submeter-se aos ditames da modernidade capitalista ocidental, os instrumentos que destinavam-se à riqueza da fruição privativa da música foram abandonados por aqueles mais adequados às grandes salas de concerto. O piano tornou-se o instrumento doméstico por excelência, capaz de solar ou acompanhar a voz e a dança - além de ser um belo móvel de sala (acaba sendo este o principal uso que lhe destinam as famílias que possuem um exemplar).

A recuperação da flauta doce no século XX foi, talvez, em parte devido às novas preocupações com a educação musical das crianças e em parte devido ao movimento pela recuperação da música antiga - aquela dos tempos pré-capitalistas na qual a flauta doce teve importância capital.

Mas acontece que a flauta doce não é apenas um instrumento, mas uma família deles. A soprano é a que mais conhecemos. Costuma ser a mais aguda em um conjunto, que pode incluir também a contralto, a tenor, a baixo, a grande-baixo e a sub-baixo (citando em ordem do agudo para o grave).

Conto tudo isso porque o quarteto Quinta Essentia, que executou o concerto de sábado, tem um compromisso profundo com toda esta história. É mais do que um grupo musical - é parte de um movimento em prol da flauta doce e da divulgação do potencial deste instrumento. Isto pode ser percebido na excelente página que o grupo tem na internet. Lá tem explicações sobre o grupo, os instrumentos, o repertório, além de muitos links úteis para quem quiser saber mais sobre flauta doce. E, é claro, divulgação do CD que o grupo gravou e para o qual o concerto também serviu como evento de lançamento.

E o movimento em prol da flauta doce inclui basicamente de dois tipos de iniciativa em relação ao repertório: primeiro, descobrir, recuperar ou transcrever música antiga; segundo, incentivar a produção contemporânea pois é isso que faz o instrumento vivo.

Neste sentido, o repertório do concerto teve relação com as duas iniciativas. Da música antiga o grupo executou uma Sonata composta por Boismortier em 1731, uma Chaconne de Purcell (século XVII) e canzoni italianas da virada dos séculos XVI e XVII (Tarquinio Merula e Adriano Banchieri). Não sei informar com precisão se essa primeira parte do repertório do concerto consistiu de peças "originais" ou "transcrições". Na verdade pouco importa, pois trata-se de uma época em que a música era feita para ser executada a gosto - podendo ser um órgão ou um grupo vocal ou um grupo instrumental. Era pouco comum a prática de discriminar o instrumento responsável pela execução e até mesmo a música que certamente era vocal (por possuir texto) era muitas vezes executada com qualquer instrumento capaz de substituir as vozes - a não ser para a música litúrgica que continuava sendo sempre vocal.

O grupo executou ainda duas peças que seguramente são transcrições: Mein junges Leben hat ein End é uma peça para órgão de Sweelinck (1562-1621), talvez o mais importante compositor holandês, ativo no exato momento das lutas de independência do país; Immutemur Habitu um moteto de semana santa para coro à cappela composto no Brasil por José Maurício Nunes Garcia. Ambas as peças soaram perfeitamente no conjunto de flautas, visto que a qualidade sonora das flautas permite emular com grande riqueza o órgão e o conjunto vocal. Afinal tratam-se de instrumentos que produzem som da mesma forma, através da vibração de uma coluna ar.

E finalmente o concerto teve o repertório contemporâneo. Um arranjo magistral do Um a zero de Pixinguinha, feito por Hélcio Müller. Uma peça jazzística de Paul Leenhouts (que não descobri se é original ou arranjo) e duas composições feitas especialmente para o grupo: Sonho Novo de Julio Bellodi e Descascando Uva de Cláudio Menandro. O bis foi um sensacional e surpreendente arranjo da trilha da Pantera Cor-de-Rosa.

O concerto todo foi uma maravilhosa sensação auditiva. A intimidade da Capela Santa Maria parece perfeita para a sonoridade do quarteto de flautas. O repertório escolhido demonstrou com maestria a riqueza de possibilidades sonoras deste tipo de conjunto. E nos faz lamentar o quanto a música do classicismo/romantismo nos fez perder em poesia sonora com a homogeneização de timbres patrocinada pelo sistema temperado e seus asseclas piano e família dos violinos.

O único comentário negativo que eu faria é para a peça de Bellodi. Me parece que o compositor está acostumado a trabalhar com outros tipos de formação instrumental e teve dificuldade em explorar as características da flauta. A rítmica derivada do samba soou pesada e ineficiente, bem como o tipo de harmonia normalmente usada para escrita em naipes de big-band. Ficou mais claro isso quando se ouviu na seqüência a peça de Cláudio Menandro, que parece ter todo o métier necessário para escrever para flauta. Menandro é gambista, com grande conhecimento de música antiga. E também cavaquinista e violonista com grande habilidade na tradição do choro. Foi nessa tradição, que tem muito a ver com as origens antigas da flauta, que Menandro buscou a escrita instrumental e harmônica que funcionou tão perfeitamente bem para o quarteto de flautas.

Para quem não viu o concerto, resta o consolo de comprar o CD. É ótimo, muito bem gravado, mas não chega nem perto da experiência de ver o grupo ao vivo. Afinal, um instrumento como a flauta, que tem na riqueza de possibilidades tímbricas sua principal qualidade, fica imensamente prejudicado quando ouvido através de alto-falantes.

.

Um comentário:

Unknown disse...

Acredito que seja do interesse dos que acessam e gostam desse blog:
Em março haverá um curso realizado pela Revista CULT, no Espaço CULT que tratará da Critica Musical.
Com o objetivo de desenvolver a capacidade crítica de estudantes e profissionais interessados em ampliar o conhecimento. Serão abordados temas importantes como o estilo dentro de uma perspectiva histórica, técnicas de entrevista e redação, o papel da internet e a produção de música independente. Para ministrar as aulas convidamos profissionais de destaque no segmento.

6 de março - sexta-feira das 19h30 às 21h30
7 de março - sábado das 10h às 18h
Aulas:
Sexta - 06 de março
19h30 - Análise crítica dentro de uma perspectiva histórica
Ministrado por: Sérgio Martins - crítico de música da revista Veja.
Sábado - 07 de março
10h - Técnicas e estilo
Como escrever uma crítica musical.
Ministrado por: Pedro Alexandre Sanches - sub-editor de cultura da revista Carta Capital.
11h30 - Evolução da crítica musical e seus critérios
Ministrado por: Jotabê Medeiros - crítico e repórter do Estadão.
14h30 - A história do rock no Brasil
Ministrado por: Kid Vinil
16h - Técnicas de entrevista
Com a participação dos alunos, um jornalista convidado entrevistará o músico Lobão.
Inscreva-se:
- Pela internet: entre no site www.espacorevistacult.com.br e acesse o link do curso A Crítica Musical e clique em "Fazer Inscrição"
- Por telefone: ligue para o Espaço Revista CULT no (11) 3385.3385 e fale com Flávia Moreira, de segunda a sexta, das 9h às 18h.
- Pessoalmente: compareça à redação da CULT na Praça Santo Agostinho, 70 - 10º andar - Paraíso - São Paulo - SP, próximo à estação Vergueiro do metrô. Horário de funcionamento: de segunda a sexta, das 10h às 18h.