sábado, 3 de maio de 2008

Um balé de Prokofiev

Não sei a explicação, mas os compositores russos se destacam entre as obras primas da música de balé. Desde o clássico Tchaikovski, passando pelo revolucionário Stravinski, e incluindo Prokofiev.

Entre as obras que colocam este último em destaque no repertório de concerto estão o poema sinfônico Pedro e o lobo (uma fábula musical que apresenta os instrumentos da orquestra às crianças), a música do filme Alexandre Nevsky de Eisenstein (para a qual também existe uma versão de concerto) e este balé Romeu e Julieta.

Há outras obras interessantíssimas no catálogo deste compositor. Das que conheço posso mencionar ao menos a Sinfonia nº 1. Mas não há dúvida que se Prokofiev tivesse composto apenas a música de Romeu e Julieta já seria suficiente para merecer destaque no repertório das orquestras.

Neste fim de abril e começo de maio, o balé foi apresentado no Teatro Guaíra, em Curitiba, com o Balé Teatro Guaíra e a Orquestra Sinfônica do Paraná. A orquestra foi regida pelo maestro convidado Andrea di Mele. A coreografia foi dirigida por Luis Fernando Bongiovanni.

A obra é muito bem escrita. Prokofiev domina com perfeição a orquestra, expandindo a variedade instrumental em relação à orquestração tradicional, que se baseia nos instrumentos de arco. Quando se escutam obras orquestrais do século XVIII ou XIX, a parte mais substancial da música está nos violinos e nos seus companheiros de naipe – violas e violoncelos, com ligeiro reforço nos graves feito pelo contrabaixo. É o caso de obras de Vivaldi, ou Haydn, Mozart e Beethoven.

Após a Sinfonia Fantástica composta por Berlioz em 1830, a orquestra nunca mais foi a mesma. Se as cordas continuaram a ser a base da orquestra para muitos compositores, por outro lado, os sopros ganharam cada vez mais importância. É o caso do balé de Prokofiev, composto em 1935 e estreado, com algumas modificações feitas pelo compositor, em 1940. A orquestração inclui as cordas de arco tradicionais, madeiras reforçadas (flautim e duas flautas, dois clarinetes, clarone e sax tenor, dois oboés e dois fagotes), metais vitaminados (6 trompas, 4 trompetes, 3 trombones e tuba), harpa, uma participação incidental de bandolim, piano obligato (quando ele compõe o naipe de percussão da orquestra, e não aparece como solista) - cujo executante se revezava também na celesta, e percussão (não vi bem por causa do fosso, mas me pareciam 3 músicos, a usar principalmente a caixa clara, os tímpanos e o xilofone).

Prokofiev transformou os sopros em protagonistas. As melodias praticamente nunca estavam nas cordas, que foram usadas principalmente para criar um interessantíssimo colchão harmônico, acordes construídos de modo a fazer com que muitas vezes o som das cordas parecesse o de um sintetizador eletrônico. As melodias revezaram-se quase sempre entre flauta, oboé ou clarinete, com belos solos do fagote na região aguda. Participações destacadas também do sax tenor. Combinações de timbre inusitadas como um solo de flauta na região médio-aguda, acompanhada oitava abaixo pelas violas. Ou um uníssono feito entre a região grave do sax tenor e a aguda do fagote. Ou as muitas vezes em que o clarone tocava em uníssono com os contrabaixos.

Aliás, a linha de baixos teve papel preponderante em muitos momentos da música. Os contrabaixos tinham vida própria, trabalhando mais em conjunto com os sopros do que com as cordas. A disposição da orquestra organizada pelo maestro favoreceu os belos efeitos estereofônicos da obra: um coro de trompetes bem à esquerda do público. Entre eles e os violinos estavam as trompas. Trabalharam muito nesta música – alternando entre a suavidade típica das trompas e a agressividade que normalmente cabe aos trompetes. O uso da surdina nas trompas causou belo efeito. Ao lado das trompas vinham duas fileiras de madeiras, atrás das violas e bem no centro do fosso (clarinetes, sax e fagotes atrás e flautas e oboés na frente). Atrás das madeiras a percussão. Chegando ao lado direito do público harpa, celesta e piano. Mais à direita o coro dos trombones e tuba, seguidos pelos contrabaixos. Às cordas ficaram mais próximas ao maestro, como de costume, apenas os contrabaixos ficaram separados pelos trombones.

Acredito que, para as músicas que são mais fortemente baseadas no naipe das cordas, as orquestras brasileiras levam grande desvantagem sobre suas congêneres européias ou norte-americanas. Não temos tradição de formação de instrumentistas de arcos. Não temos capilaridade – são pouquíssimos praticantes destes instrumentos no Brasil, o que torna difícil montar um time de 30 ou 40 músicos de altíssimo nível. Já os sopros, além de precisarem de uma menor quantidade de músicos, o que torna mais fácil formar naipes de alto nível, contam com uma grande difusão no Brasil. Graças à tradição dos grupos de choro temos flautistas e clarinetistas em abundância. Trompetes e trombones também são bem distribuídos, devido à existência de bandas marciais na maioria dos municípios brasileiros. Assim, nossa orquestra provavelmente não deve nada em qualidade sonora a outras do hemisfério norte quando se trata de uma obra como a de Prokofiev, na qual os sopros têm papel preponderante.

Quem assistiu aos concertos (um total de oito récitas que acabam domingo, dia 4 de maio – ainda dá tempo de ver), foi brindado com a caprichada sonoridade protagonizada por músicos que desempenharam os trechos de maior destaque na obra. O saxofone de Rodrigo Capistrano, a flauta de Fabrício Ribeiro e o inesperado bandolim de Roger Burmester, músicos convidados para o concerto. E os titulares da orquestra que também brilharam – o clarone de Maurício Carneiro, os clarinetes de André Erlich e Marcelo Oliveira, o oboé de Paulo Barreto. As trompas chefiadas por Edivaldo Chiquini e os trombones por Sílvio Spolaore.

A coreografia – e disso falo sem conhecimento técnico – foi excelente. Me parece que Bogiovanni contextualizou muita coisa, colocou propostas mais contemporâneas em vários passos. Não sei se foi idéia dele, mas colocar um bailarino homem (Rodrigo Mello) no papel da ama Julieta deu ótimo efeito – além de dar o toque de humor que foi o ponto alto da coreografia. Me parece que os bailarinos que dançaram são todos do corpo do Balé Guaíra, com qualidade que só pode ser louvada por um apreciador leigo no assunto como eu.


Ao escutar esta obra musical, não pude deixar de pensar num dilema que incomodou a crítica musical no século passado. No Ocidente a vanguarda musical passou a ser erigida em símbolo de liberdade – liberdade de criar e de inovar, sem interferência política. Uma crítica direta às imposições estéticas do realismo socialista, política oficial dos regimes comunistas durante a Guerra Fria. Mas hoje, já com certo distanciamento, e sem a necessidade de se comprometer com um ou outro lado desta disputa ideológica, pode-se pensar que a liberdade estava do outro lado. Sem a ditadura da idéia de que toda a obra tem que inovar, tem que fazer “avançar” as técnicas de composição, os compositores do leste europeu (e também os de outros países periféricos como os da América Latina) atingiram a verdadeira liberdade estética: compor música por que gostam de música. E para um público que vai ouvir música por que gosta de música. E fica combinado que ninguém precisa compor música para dizer que inovou, que fez avançar a técnica; e que ninguém precisa ouvir música para fingir que entendeu alguma coisa.

Acredito que se não fosse a sensibilidade de compositores como Prokofiev, no século XX a orquestra sinfônica teria se tornado peça de museu, condenada pela irrelevância elitista e pelo hermetismo de vanguardas que têm como lema o desprezo pelo grande público.

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