sábado, 17 de maio de 2008

Trilha sonora para uma festa antropófaga dos Tupinambás na qual um viajante alemão quase serviu de jantar

Um dos trabalhos mais difíceis e mais importantes para o estudo da música do passado é a recriação sonora. Como fazer ouvir hoje uma música de séculos atrás, quando a notação musical era diferente, os instrumentos musicais e suas técnicas eram diferentes, os músicos eram diferentes, os usos da música eram diferentes, os ouvidos das pessoas ouviam diferente?

Uma das possibilidades é consultar os tratados da época para aprender as corretas técnicas de execução, construir réplicas de instrumentos antigos a partir de figuras ou exemplares existentes em museus, aprender a ler notação antiga ou basear-se em transcrições modernas. Tudo isso pode levar a uma execução autêntica. Ou não.

Já que ninguém poderá saber ao certo como deveria soar a música de tempos remotos, outros músicos se permitem uma recriação mais livre. Foi o que fez Anna Maria Kieffer em seu disco Teatro do descobrimento (esgotado comercialmente, mas disponível aqui), cujos processos de pesquisa e recriação são descritos no seguinte texto:

KIEFFER, Ana Maria. "A flauta de Matuiú: registro, memória e recriação musical das festas no Brasil nos séculos XVI e XVII." in JANCSÓ, István; KANTOR, Iris. (orgs.) Festa. Cultura e sociabilidade na América portuguesa. vol II. São Paulo: Imprensa Oficial/HUCITEC/EDUSP/FAPESP, 2001. p. 891-901.

A primeira explicação do texto remete à faixa 7 do disco – Cantos Tupinambás/Salmo 130.

Ana Maria explica que para recriar a música dos tupinambás baseou-se em relatos de três viajantes: Gabriel Soares de Sousa no seu Tratado descritivo do Brasil em 1587, Jean de Léry em seu Histoire d’um voyage faict en la terre du Brésil autrement dit Amerique (1585) e Hans Staden – que a autora cita da tradução brasileira A verdadeira história dos selvagens (trad. Pedro Sussekind, RJ: editora Dantes, 1999).

Do depoimento de Gabriel Soares de Souza a autora extrai a informação de que os tupinambás o músico gozava de muito prestígio, recebendo até mesmo salvo-conduto para transitar entre inimigos. Mas o observador português caracteriza o canto indígena como desafinado (“de sofrível tom” – na verdade por não ser baseado no sistema melódico europeu), em uníssono, cantado de forma responsiva (um grupo canta o solo e outro responde) e tendo presença de improvisos. Aqui também descobre sobre o uso de percussão – tambor e maracás.

Do francês Léry a autora aproveita melodias de anotadas de cantos indígenas, que ela afirma serem confiáveis pois, apesar de não haver certeza quanto à precisão da notação ocidental para o registro da música indígena, as melodias anotadas por Léry na década de 1580 são confirmadas como autênticas por observadores como Sipx e Martius (que observaram melodias muito semelhantes entre os índios na década de 1810) e Helza Cameau (que fez o mesmo em um estudo da década de 1970). Ana Maria Kieffer também aproveita termos de um glossário tupinambá fornecido por Léry, para servir de texto nas vocalizações que gravou.

No relato de Staden a autora informa-se sobre o fato de que o viajante luterano teria cantado um salmo: Das profundezas do infortúnio rogo por ti. Por informação de segunda mão (na dissertação de mestrado de Paulo Castagna), descobre que Henriqueta Braga, em seu livro Música sacra evangélica no Brasil, afirma ser o Salmo 130 – De profundis, com música composta por Lutero. Kieffer provavelmente não sabe, mas Henriqueta Braga dá esta como sendo a primeira vez que se entoou um cântico da tradição reformada no Brasil, e que Staden teria cantado o hino como possibilidade de conforto espiritual diante da iminência de ser devorado num ritual antropofágico. A beleza da música teria impressionado os tupinambás que desistiram da antropofagia. (Alguns evangélicos fundamentalistas diriam que o “poder de Deus agiu através da música de Lutero”, segurou “os demônios” e salvou o crente do massacre dos pagãos.) O que a própria Henriqueta não informa é que provavelmente isso seja uma bravata de Staden, que apavorou-se diante da morte. E que o espetáculo de pavor provavelmente levou os tupinambás a desistirem de um ritual cujo objetivo não era alimentar-se fisicamente, mas absorver a coragem do inimigo.

Mas Ana Maria Kieffer aproveitou o hino luterano para servir de base, num canto grave em voz masculina, que se destaca no final da música. A introdução é feita por uma flauta indígena tocada por Valéria Bittar (grupo Anima), conforme consultoria de Loike Kalapalo. A técnica vocal é baseada em pesquisas da própria autora entre caiapós e suiás, e outras questões de inflexão musical são baseadas no estudo de Helza Cameau.

Eis a música:

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