sábado, 19 de abril de 2008

Os concertos para violão de Radamés Gnattali

Já terminei de ouvir a série sobre o violão espanhol nos programas radiofônicos Violão com Fábio Zanon. Surpreendente. Uma riqueza musical exorbitante e desconhecida. Zanon apresentou compositores que o público ignora, explicou sua música, disponibilizou e divulgou gravações pouco conhecidas. Um grande serviço.

Após os 13 programas sobre o violão espanhol, começo agora a ouvir a série (a partir do programa 14) sobre o violão brasileiro. Se o violão foi inventado na Espanha, e teve na cultura espanhola sua grande fonte de material musical, acredito que no Brasil ele tenha ganhado uma nova dimensão.

A série sobre o violão brasileiro de Fábio Zanon começa com os concertos para violão e orquestra de Radamés Gnattali. São cinco concertos ao todo, incluindo um para 2 violões, oboé e orquestra. As gravações são apresentadas em 2 programas. O link para a página do programa está aqui. Ou, quem preferir, pode entrar direto no servidor de arquivos aqui e aqui.

Os programas foram veiculados na rádio em 2006, aproveitando o ensejo de comemorar o centenário de nasicmento do compositor. Aliás, como ressaltou Fábio Zanon, centenário que passou quase em branco. Uma danada duma injustiça com um dos maiores representantes da cultura brasileira.

Radamés tem sido injustamente omitido no panteão canônico da música brasileira. Por que é um compositor difícil de situar. Não compôs canções, por isso fica de fora da MPB. Trabalhou muito com o choro, mas os chorões praticam um tipo de "nacionalismo por subtração", para usar um termo de Roberto Schwarz, que exclui o internacional. Como Radamés teve ligações muito próximas com o jazz norte-americano, fica sumariamente excluído também do panteão do choro. Que lhe resta como indicação para figurar na história dea música brasileira? As composições de concerto não merecem crédito por que o compositor fica sempre estigmatizado por "mexer com música popular", ou por não ter uma estética composicional suficientemente vanguardística para os cânones modernistas. Finalmente, a atividade na qual Radamés foi indiscutivelmente o mestre dos mestres, o arranjo ou orquestração, não recebe ainda muito crédito no Brasil. Afinal, ninguém sabe ainda o lugar do arranjador no espaço cultural brasileiro - se merece o título de criador ou se é mero adaptador. Se têm proposta estética ou segue meramente os ditames da indústria fonográfica/radiofônica/televisiva.

Por essas e outras Radamés tem sido injustamente desalojado do lugar que merece na memória musical brasileira. E por isso a divulgação de seus concertos para violão nos programas do Fábio Zanon vieram em boa hora. Os cinco concertos revelam um compositor que faz música do melhor tipo. Desintoxicado da preocupação de ser "vanguarda", deu verdadeira contribuição para criar uma nova linguagem. Da mistura do samba, do jazz e da música de concerto mais conservadora e neo-clássica, surge a linguagem verdadeiramente moderna. Por que tem discurso. E porque seu discurso pode ser ouvido/entendido por um amplo espectro de público.

Quando o discurso que analisa a música brasileira deixar de procurar os heróis do nacionalismo modernista ou da composição de vanguarda, ou da canção, ou do choro autêntico, talvez possamos descobrir o real valor de Gnattali. Um verdadeiro herói da diversidade, da mestiçagem musical, do multi-culturalismo musical. Um compositor que dominou como poucos o ofício. E, acima de tudo, autor de várias das mais belas músicas que já foram tocadas neste país.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Música na corte portuguesa no Rio de Janeiro

Neste ano em que se completam 200 anos da corte portuguesa no Rio de Janeiro, estamos em um bom momento para se refletir sobre as implicações históricas e culturais deste momento fundador do nosso país.

O Melômano vai publicar vários posts tentando acompanhar os trabalhos acadêmicos que vêm surgindo nos últimos tempos, tratando da música nesse período. São muitos e de ótima qualidade. Começamos pela seguinte tese, defendida no doutorado em história da UFF:

AZEVEDO E SOUZA, Carlos Eduardo de. Dimensões da vida musical no Rio de Janeiro: de José Maurício a Gottschalk e além, 1808-1889. Tese de doutorado, UFF, 2003.

Quando conheci esta tese, há dois anos atrás, ela foi para mim uma grande descoberta, pois as informações disponíveis estavam em obras de qualidade histórica muito duvidosa - o compêndio de História da Música mais atual no Brasil era o de Vasco Mariz, escrito em 1981 e baseado numa concepção historiográfica há muito superada, pois enfatiza biografias de músicos e descrições técnicas de obras, com pouca ou nenhuma análise do meio musical e cultural do período.

A tese está disponível na biblioteca digital da UFF. (Mas que raio! Não consigo mais achar o link. Passei um e-mail para o ator. Até o Lattes dele está desatualizado pra caramba! Quando eu descobrir isso de novo, ponho aqui no blog...)

Dividirei a resenha em partes, a primeira tratando sobre a Capela Real portuguesa. Posteriormente irei comentar outros aspectos do trabalho, relativos ao período regencial e ao período imperial.

I - A Capela Real portuguesa

A Capela Real portuguesa existe pelo menos desde o século XIII, ainda de forma itinerante, acompanhando as cortes feudais em périplo por diversas igrejas, até fixar-se em Lisboa no século XV. Com a ascensão ao poder da dinastia dos Bragança, em 1640, inicia sua fase áurea. Segundo o autor, D. João IV, o primeiro monarca português após a União Ibérica, tinha recebido instruções claras de seu pai (em testamento) para manter a sua Capela. Foi também autor de um tratado sobre música e construiu o que provavelmente era a principal biblioteca de música da Europa, destruída pelo terremoto de 1755. (p.48) O autor também explica que no século XVIII, abastecida pelo ouro do Brasil, a monarquia portuguesa investiu ainda mais na Capela, contratando músicos italianos e mandando músicos locais para estudar na Itália. (p. 49)

Em 1730 a Capela Real portuguesa tinha 26 cantores italianos. Domênico Scarlatti foi mestre de capela em Lisboa entre 1720 e 1729. No período pombalino (após 1750), quando o Estado passou se organizar pelos moldes absolutistas e disputar o poder com as instâncias religiosas, ocorreu uma derrocada da música litúrgica e do padrão da polifonia religiosa portuguesa, tornando-se dominante o gosto musical mundano da ópera napolitana, que passa a ditar inclusive o estilo musical da composição de música sacra.

Outros renomados compositores napolitanos que atuaram em Portugal foram David Perez, que foi mestre-de-capela a partir de 1752 e Nicolo Jommelli, que não aceitou cargo em Portugal mas assinou contrato para fornecimento anual de óperas e música litúrgica. Além disso, havia uma grande presença de cantores e músicos italianos, que fizeram com que atividade musical em Portugal (tanto ópera como música litúrgica) estivesse sempre atualizada em relação à moda criada na Itália.

Por essa escola napolitana de composição formou-se toda a nova geração de compositores portugueses: João de Souza Carvalho (1745-1798), que estudou em Nápoles e foi professor de toda uma geração de compositores, como Antônio Leal Moreira (1758-1819), João Domingos Bomtempo (1775-1842) e Marcos Portugal (1762-1830).

Esta tradição da Capela Real portuguesa transferiu-se em 1808 para o Rio de Janeiro, juntamente com a vinda do príncipe regente. Boa parte dos músicos italianos dispersou-se pela Europa, mas muitos vieram atrás da vida da corte após 1810.

O autor narra as peripécias para constituir a Capela Real no Rio de Janeiro, o que incluiu dificuldades com local de funcionamento e com disponibilidade de músicos, sendo que os principais (inclusive o mestre-de-capela desde 1800 - Marcos Portugal) tinham ficado na Europa. O grosso de músicos e cantores começou a vir de portugal em 1809, conforme relação de nomes dada pelo autor à página 58. O autor também relata o aumento gradativo das despesas com a contratação de músicos, tentando manter a alta qualidade artística da Capela Real. Para tanto foram trazidos a partir de 1817 vários castrati italianos para atuarem como solistas - sabendo-se que trabalharam com a Capela Real e também nos teatros de ópera do Rio de Janeiro. O ápice do efetivo de músicos da Capela Real deu-se em 1824, com um total de 64 músicos assalariados da monarquia portuguesa.

O autor dedica algumas páginas a discutir o impacto da chegada de Marcos Portugal ao Rio de Janeiro em 1811. Primeiro mostra a ambigüidade das biografias deste que era o compositor preferido da família real, não sendo possível determinar com clareza os motivos por que ficou ainda 3 anos em Portugal, após a vinda da corte. O fato é que sua chegada pôs fim ao período de maior prestígio do carioca José Maurício Nunes Garcia, que assumiu o cargo de mestre-de-capela enquanto não estava presente o ilustre lisboeta. Nunes Garcia estava acostumado a um estilo mais austero de música religiosa que ficou totalmente desprestigiado com a mudança de gosto provocada pela chegada da corte. (O tema da mudança estilística de Nunes Garcia e do próprio gosto musical no Rio de Janeiro tem sido alvo de vários estudos importantes, que vou comentar aqui no blog em outras oportunidades.)

Existe também uma polêmica sobre a atitude de Marcos Portugal em relação a seus colegas de atividade. Todos os biógrafos de Nunes Garcia apontam o português como um vilão invejoso e capaz de tudo para destruir o rival e também o austríaco Neukomm que esteve no Brasil entre 1816-1821. Mas segundo o autor a documentação disposível não permite conclusões definitivas.

Após o período áureo durante a estada da corte portuguesa, a partir da independência a Capela Real transformou-se em Capela Imperial e entrou em franca decadência, segundo o autor. Os salários começam a sofrer atrasos e as renovações de contrato eram sempre acompanhadas de redução na remuneração. Marcos Portugal foi sucedido no cargo por Fortunato Mazziotti e Nunes Garcia por Simão Portugal (irmão de Marcos). Muitos comentaristas atribuíram a decadência da vida musical à mediocridade destes dois músicos o que é falso. Para o autor ocorreu mesmo uma crescente dificuldade financeira que culminou com a virtual dissolução da Capela durante o período regencial (1831-1840). (Sobre este período regencial especificamente, há outra ótima tese que vou comentar aqui no blog em outra oportunidade.) Nesta época os músicos foram obrigados a procurar funções eclesiásticas, oferecer-se nos jornais para dar "liçoens de múzica" ou mesmo emigrar para Buenos Aires e Montevidéu.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Chacona e passacalia

Escrevo este post para responder a uma pergunta instigante de meu colega Francisco Wildt, surgida a partir de uma aula de harmonia, disciplina pelo qual ele é responsável no departamento de música da FAP (Faculdade de Artes do Paraná).

Este post é uma resenha do verbete correspondente no dicionário de música Harvard, que considero o melhor dicionário de música em um volume. Obviamente não conheço todos que existem, e este já é um pouco antigo – mesmo assim, é bem melhor que outros recentes que eu conheço.

“Chaconne and passacaglia” in APEL, Willi. Harvard dictionary of music. Cambridge MA: Harvard UP, 1944. p. 126-128.

Chacona e passacalia são duas formas da música barroca, proximamente aparentadas, ambas com característica de variação contínua sobre um tempo ternário lento, e com um ritmo harmônico lento (geralmente um acorde por compasso).

O autor diz que os termos foram alvo de fúteis discussões sobre sua origem e significado, bem como sobre a diferença entre eles. Os compositores barrocos usavam ambos os termos “indiscriminadamente” – ou seja, para os compositores tanto fazia chamar de chacona ou passacalia uma peça.

Para o autor, isso não impede que se busque maior precisão no uso atual destes termos. A proposta de APEL é distinguir as duas formas pela presença ou não de basso ostinato. Passacalia quando houver, e chacona quando não. Ocasionalmente o ostinato da passacalia pode estar na voz aguda e não no baixo.

Comumente o ostinato é um tetracorde diatônico descendente:






Ou sua variação cromática:



No entanto, esta distinção, possível de ser adotada hoje em dia – passacalia como variação baseada em um baixo ostinato e chacona como variação baseada em um esquema harmônico – não existia na prática dos compositores barrocos.

Sob a denominação moderna de passacalia poderiam ser classificadas passacalias de Bach e Couperin, bem como chaconas de Buxtehude, Kerll e Plachelbel, além de composições vocais como o dueto Pur ti miro de Monteverdi.

Por outro lado, podem ser classificadas modernamente como chaconas as Cento partite sopra il passacaglio de Frescobaldi, a Passacaglia de George Muffat e a famosa Chaconne de Bach. Há ainda exemplos de chacona em Beethoven (Variações em Dó menor op. 32), Brahms (movimento final da 4ª Sinfonia), Busoni (Toccata: Prelúdio, Fantasia, Ciaccona, de 1921) e Krenek (Toccata und Chaconne op. 13).

Os compositores do barroco francês ainda usavam freqüentemente os termos chaconne e passecaille para formas diferentes como o rondó. Exemplos desse uso são a Chaconne de Chambonières, a Chaconne-rondeau de d’Anglebert, e a Passecaille do 2º volume das Pièces de clavecin de Couperin.

Sobre a origem dos termos, APEL especula que a chacona era provavelmente uma dança “selvagem e sensual” importada do México para a Espanha no século XVI. Depois de importada para a Europa teria perdido seu caráter “desenfreado”, como aconteceu com a sarabanda e (300 anos mais tarde) o tango. A passacalia também foi originalmente uma dança, e o termo pode ter surgido da pasacalle, uma canção de rua espanhola.