quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Sobre um pioneiro

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Na década de 1970 iniciou-se no Brasil um movimento de executantes de música antiga. Costuma-se denominar assim a música composta antes do século XIX, quando a construção dos instrumentos, suas técnicas de execução, a teoria musical, e o lugar social da música eram tão diferentes do mundo moderno que convém pensar em outra categoria de música.

Os primeiros executantes brasileiros eram flautistas, cravistas ou gambistas que estudavam na Europa e vinham tocando o repertório europeu do início do barroco, ou ainda mais antigo. Desfrutavam de uma consolidada na Europa havia várias décadas, com publicação de partituras e tratados, além da disponibilidade de vários especialistas para se fazer aulas ou cursos.

Mais recentemente surgiram alguns outros curiosos que pensaram em executar não apenas música antiga, mas música antiga feita no Brasil, ou melhor, na América Portuguesa. Entre os que nadaram contra a corrente tentando recuperar o que foi a sonoridade do nosso passado histórico, estava um jovem estudante da Escola de Música e Belas Artes do Paraná.

Lá pelos idos de 1996 ele resolveu começar um grupo musical com vários estudantes. Coro e orquestra. O mentor do grupo seria também o regente (e esse era seu primeiro trabalho como maestro, por volta dos 20 anos de idade). As partituras vinham do trabalho musicológico de um professor do curso - Harry Crowl, resultado do período em que trabalhou como pesquisador da Universidade Federal de Ouro Preto.

O nome o grupo era Americantiga. O nome do regente Ricardo Bernardes. Este blogueiro que vos escreve participou do coro e também executou baixo contínuo ao violão.

O grupo chegou a gravar um CD (do qual não participei). Fez vários concertos. Mas se acabou quando o regente mudou-se para São Paulo a fim de buscar maiores oportunidades profissionais.

Depois de longo tempo sem contato, descubro que meu colega Ricardo Bernardes já defendeu dissertação de mestrado em musicologia na USP, sobre uma obra de José Maurício Nunes Garcia. É agora doutorando em Austin (Texas), e o grupo Americantiga continua ativo.

Executou recentemente um concerto em Washington, a convite da embaixada brasileira e como parte das comemorações dos 200 anos da corte portuguesa no Rio de Janeiro.

Assisto aos vídeos do concerto, e percebo o quanto evoluiu o nosso maestro e seu grupo. Extremo profissionalismo. Instrumentos de época. Execução precisa e cuidadosa. Interpretação com autenticidade tanto no que toca ao período joanino como ao atual (um grande dilema para quem trabalha com música antiga).



A obra executada é de Marcos Portugal, preferido de D. João VI e que passou o fim de sua gloriosa carreira no Rio de Janeiro.

Vida longa ao Americantiga, que, aliás, tem um excelente canal no Youtube...

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domingo, 31 de agosto de 2008

Ouvidos maricas

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Quanto à música tradicional, tudo indica que Ives pouco apreciava além da sua própria e de alguns outros norte-americanos não menos independentes com os quais só entraria em contato depois de praticamente deixar de compor, em 1918. Ele considerava Beethoven "um grande homem - mas que pena que não tivesse pelo menos um belo acorde independente de qualquer tonalidade". Para Ives, a música fora emasculada pela necessidade de agradar seu público; era preciso oferecer um alimento mais sólido aos ouvidos e ao espírito: ritmos complexos, texturas complicadas e acima de tudo acordes dissonantes. Sua reação às vaias durante a execução de uma obra de seu amigo Carl Ruggles é típica: "Seus maricas de uma figa", vociferou, "quando ouvirem música forte e máscula como esta, levantem-se e usem seus ouvidos como homens!"

GRIFFITHS, Paul. A música moderna. Uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 50-51.

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quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Mignone e Nazareth

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Ernesto Nazareth é um nome fundamental da história da música brasileira. São algumas personalidades que conseguiram sintetizar os dilemas de ser compositor numa longínqua periferia européia: José Maurício Nunes Garcia, no período da corte portuguesa; Carlos Gomes no 2º império; Ernesto Nazareth na 1ª república.

Ernesto Nazareth foi a síntese contraditória do erudito e do popular, do nacional e do estrangeiro, de Chopin e do maxixe. Mediador entre mundos culturais distintos que se juntaram na formação da música mais criativa do mundo.

Muito disso está discutido neste fabuloso texto de José Miguel Wisnik:

Machado maxixe

O que talvez seja pouco sabido, é que Nazareth foi uma influência importantíssima para nomes como Radamés Gnattali, Villa-Lobos e Francisco Mignone. Villa-Lobos era orgulhoso demais para assumir influência de quem quer que fosse. Mas é sabido que tocou violoncelo na mesma orquestra de cinema em que Nazareth tocava piano.

Já Francisco Mignone assume essa influência abertamente. Não vê motivo do que se envergonhar. Aliás, suas famosas Valsas de esquina devem tanto a Nazareth quanto à prática de seresta pelas ruas de São Paulo durante a adolescência de Mignone (na década de 1910).

Segue um vídeo onde Mignone já idoso conta de seu encontro com Nazareth

terça-feira, 1 de julho de 2008

Melodia-de-timbres

Uma técnica de composição desenvolvida e usada na tradição germânica tardia, que ajudou a complexificar ainda mais as relações tonais através da não-linearidade e não discursividade melódica.

Ou seja, vejamos como Schoenberg fez isso numa das peças do Pierrot Lunaire:

Imagine uma seqüência harmônica singela, sem relações tonais muito óbvias, mas também nada que seja de outro planeta. Eu diria talvez que soa uma harmonia quase debussyana. Tentando forçar alguma lógica tonal, poderia-se dizer que é uma dominante de Dó, com uma bordadura diatônica, terminando em um acorde alterado (5ª aumentada). Só que a presumida tônica não aparece. Até aí está tudo tranqüilo, nada que já não viesse sendo feito desde 1850:



Só que Schoenberg não está escrevendo para piano. O trecho acima aparece instrumentado para flauta, clarinete e violino, como introdução instrumental para a entrada da recitante. Imaginaríamos então uma distribuição das vozes assim:



Só que Schoenberg, além de fugir às obviedades tonais, decide também fugir da obviedade na condução das vozes, criando um efeito que faz com que a melodia (que nossos ouvidos costumam identificar facilmente na parte mais aguda) seja distribuída uma nota para cada instrumento. O resultado é que a melodia ouvida entre as notas mais agudas não esteja num deslizamento dentro do timbre do mesmo instrumento. Pelo contrário, ela é construída ponto a ponto, em notas que caminham de um timbre a outro.




Nenhum instrumento tem linearidade melódica em seu próprio trecho. O que ouvimos uma melodia que transita por todos os instrumentos, uma nota para cada um.



Para ouvir o trecho:





P.S. Não está funcionando o áudio, vou ter que corrigir isso depois...

sábado, 7 de junho de 2008

Uma obra-prima lirica

Após uma série de textos em que destaquei a habilidade de Carlos Gomes como compositor de danças de salão e de música sinfônica (aqui, aqui e aqui), não poderia deixar de mostrar um pouco do que foi a principal habilidade e o principal motivo de seu sucesso internacional: a incrível habilidade de criar melodias dramáticas, da qual a ária cantada pela personagem que dá nome à ópera Fosca é provavelmente o maior exemplo.

A história desta ópera se passa entre piratas da Ístria, no século X. Gajolo é o chefe, Fosca sua irmã. Cambro o sub-chefe que quer trair Gajolo e tomar seu lugar. Paolo é príncipe de Veneza que foi seqüestrado e é devolvido mediante resgate. Delia é sua noiva veneziana. Fosca está apaixonada por Paolo, foi ela que intercedeu para que não fosse morto por Gajolo. Fosca cuidou de seus ferimentos no esconderijo dos piratas. Agora não quer que Paolo seja devolvido, mas Gajolo insiste que um pirata tem que cumprir sua palavra.

Os piratas fazem um novo plano, para seqüestrar dez casais durante cerimônia de casamento na igreja. Coincidentemente, Paolo e Delia estão entre os casais. Cambro descobre isso pois andou pela cidade disfarçado de mercador. Conta-o a Fosca, que liderará o ataque à igreja. Quando ela sabe que Paolo se casará, canta a ária Quale orribile pecato:

A lei d’apresso egli era!
Eterno affetto ei le giurava!
Ed ai suoi dolci accenti con un tenero sguardo
con u sorriso risponde a costei
ch'io tanto abboro!
Per lor l'ebbrezza d'un piacer divino
per me il dolor d'un disperato amore!
Ciel! Per essi la gioja... l'ebbrezza...
Ah! E dio le inferno ho in core!

(cobre o rosto com as mãos e chora)

Quale orribile peccato espiar quaggiú
degg'io? Dunque un cor tu m'hai donato
per straziarlo, per straziarlo, o avverso.
Dio! O Dio! Un lembo arcano a me svelasti,
ah! Poi, crudel! Ah! Poi,
crudel miripiombasti,
ripiombasti nell'abisso del dolor!
Ah! Tu del cielo un lembo arcano
a miei sguardi un di svelasti,
poi, crudel, mi ripiombasti
nell'abisso del dolore, ohimé!
mi ripiombasti, mi ripiombasti
nel dolor, nell'abisso del dolor
Ohié! Ah! Crudel! Ah! Crudel!

(cai de joelhos)


tradução:

Ele junto a ela
jurava-lhe terno afeto,
e com um olhar terno
responde ocm um sorriso
à sua doce voz, o que tanto me aborrece!
Para eles, a sensação de um prazer divino;
para mim,
a dor de um amor desesperado!
Ah! E eu com o inferno no coração!

Que pecado horrível eu espio?
Portanto o coração que me deste
era para ser despedaçado, despedaçado.
Oh! Deus! Oh! Deus! Um segredo extremo a mim
revelaste, ah! Depois, cruel! Ah! Depois,
cruelmente me desmontaste,
me jogaste no abismo da dor!
Ah! Um dia revelaste aos meus olhos
um segredo extremo dos céus
Ah! Dos céus um segredo extremo
me foi revelado, depois fui cruelmente jogada
no abismo da dor, ai de mim!
Depois me desmontaste, me jogaste na dor, no abismo
da dor, ai de mim! Ah! Cruel! Ah! Cruel!


Carlos Gomes compositor sinfônico - III

Fosca, estreada em 1873, é considerada a ópera musicalmente mais desenvolvida de Carlos Gomes. Não foi muito bem recebida pelo público, o próprio compositor a considerava uma ópera para entendidos - assim como dizia que Il Guarany era para os brasileiros e Salvator Rosa (1874) para os italianos.

Esta abertura é também, provavelmente, a melhor obra orquestral de Carlos Gomes. Aqui numa interpretação de Fernando Malheiros com a Ópera Nacional de Sófia.

Carlos Gomes compositor sinfônico - II

"A música erudita brasileira, como forma de expressão capaz de refletir sobre sua própria história e criar a partir disso, começa com Il Guarany". (MAMMI, Lorenzo. Carlos Gomes. São Paulo: Publifolha, 2001. Coleção Folha Explica. p. 92)

Esta frase, dita no livro que é a interpretação mais atualizada deste compositor na cultura brasileira, dá a medida da importância que teve a composição da ópera Il Guarany para a música brasileira.

Quando Carlos Gomes partiu para Milão em 1863, já levava na bagagem as idéias para esta ópera, cuja finalização demoraria mais alguns anos até resolver questões empresariais que permitissem a um compositor oriundo da América Latina encenar uma ópera no Scala de Milão, a Meca da ópera oitocentista. A primeira ópera italiana de Gomes foi à cena em 1870. Prova de que ele já era um compositor maduro quando chegou à Itália é a existência de sua ópera A noite do castelo, já encenada no Brasil em 1861.

Outro comentarista afirma que Carlos Gomes foi, ainda mais do que grande operista, um grande compositor sinfônico. Como não houvesse no Brasil (nem na Itália) de fins do século XIX um circuito de música de concerto (público, editoras, crítica) a única opção para um compositor com vocação sinfônica como Carlos Gomes era escrever partes instrumentais bastante desenvolvidas para suas óperas. É o que afirma Marcos Pupo Nogueira em sua tese de doutorado Carlos Gomes um compositor orquestral: os prelúdios e sinfonias de suas óperas (1861-1891). (FFLCH-USP, 2003).

A seguir, a gravação da Protofonia do Guarani, certamente a música orquestral mais ouvida no Brasil - tanto em concerto como também por ter se tornado a trilha de abertura do programa radiofônico A voz do Brasil. Seguida do Bailado do 3º ato, onde representam-se danças indígenas. Mammi afirma que este bailado é a primeira experiência composicional que tenta representar o primitivismo de povos não-europeus através de efeitos orquestrais inauditos para as técnicas acadêmicas - recurso que seria muito desenvolvido no século XX por compositores como Debussy, Stravinski e Bartok. Neste bailado Carlos Gomes reaproveitou muito material composto anteriormente como danças de salão.

A gravação é com a Ópera Nacional de Sófia, regida por Fernando Malheiros. Uma interpretação muito interessante, onde se pode ouvir com mais clareza a força do naipe de sopros - que muitos interpretam como defeito na orquestração de Gomes ("influência da música de banda"), mas que pode ser interpretado como traço bastante inovador de sua música.


Carlos Gomes compositor sinfônico - I

A primeira ópera composta por Carlos Gomes foi A noite do castelo. Foi escrita para ser encenada pela Companhia de Ópera Nacional, provavelmente o maior empreendimento cultural jamais havido no Brasil.

A noite do castelo foi escrita em 1861, pouco depois do compositor chegar ao Rio de Janeiro. Ele teve, antes desta ópera, pouco mais de um ano de aulas no Conservatório Imperial, onde foi aluno de Gioachino Giannini. Depoimentos da época dão conta de que ele era um professor relapso. De qualquer forma teve importante papel como regente na Companhia de Ópera Nacional. Na mesma companhia empregou Carlos Gomes como assistente, onde realizava ensaios, transcrições, cópias de partituras, etc. Esta deve ter sido uma grande escola.

Mesmo assim, não seria possível dizer que Carlos Gomes tenha chegado "cru" ao Rio de Janeiro, pois em um ano seria impossível desenvolver a técnica necessária para compor uma abertura como a desta ópera. Ele já estava razoavelmente "pronto" quando chegou de São Paulo, assim como a composição desta ópera também demonstra que ele já estava razoavelmente "pronto" antes de ir estudar em Milão.

Eis a abertura da ópera, em gravação precária:


Carlos Gomes compositor de salão

Carlos Gomes é muito reconhecido como o grande compositor de ópera, representante do Brasil no panteão dos grandes compositores do século XIX, tendo recebido reconhecimento e fama em Milão, capital da ópera italiana.

Muitas das biografias deste compositor tentaram reforçar esta visão do herói nacional, do grande operista. Ele é tudo isso. Mas tem muito mais. Compositor de modinhas e de música de salão - danças para piano, muito próximo de outros compositores mais ou menos contemporâneos, como Ernesto Nazareth ou Henrique Alves de Mesquita.

Filho de um músico de banda, e acostumado à atuação nos bailes da sociedade de Campinas, a música popular teve papel primordial na formação musical e na consolidação do estilo composicional de Carlos Gomes. Muitas de suas peças de salão foram posteriormente re-elaboradas e aproveitadas em trechos das suas óperas.

Aqui algumas delas, em gravação um pouco erudita demais. Ficaria melhor na mão de um pianista acostumado a tocar maxixes...


sexta-feira, 6 de junho de 2008

Música e espiritualidade na semana Champgnat

O Colégio Marista Paranaense promoveu ontem mais um concerto da série Música e espiritualidade em sua capela. Desta vez o concerto coincidiu com a semana em que os maristas homenageiam Marcelino Champagnat, o fundador da irmandade que tem como marca sua atuação na educação baseada em valores cristãos.

Os concertos vêm sendo organizados pela pastoral, com patrocínio da APM e direção musical de Fabrício Mattos, ex-aluno do colégio. O programa da noite de ontem foi selecionado para conter obras de compositores que tiveram temporadas parisienses contemporâneas ao período de Marcelino Champagnat (início do século XIX).

A capela do marista é um lugar muito belo e inspirativo, do tipo que faz um protestante (do ramo calvinista) como eu ter raiva de sua própria tradição religiosa. Nosso iconoclasmo nos faz perder toda a beleza da devoção contida nas pinturas e imagens. As paredes da capela são lisas, mas pintadas com um técnica tal que nos sugere volume. Fiquei o tempo todo pensando em ir lá passar a mão para ver se as paredes são lisas mesmo, e se o volume é apenas sensação visual provocada pela pintura.

Um representante do colégio fez um pequeno discurso associando a prática de estarmos ali, assistindo a uma apresentação musical e a devoção a Deus e ao próximo. Ressaltou os valores maristas e cristãos e lembrou o quanto a música pode ser uma foram de sairmos da nossa rotina ditada pelo relógio "parando de correr contra o tempo e deixando que ele corra a nosso favor".

A música que foi executada, se prestou exatamente a esta espiritualidade, e aos valores maristas que ressaltam a singeleza e a dedicação ao próximo. Obras de Ferrer, Burgmüller e Carulli - compositores que não costumam ser colocados no pedestal da fama e da glória da música clássica, mas que foram importantes manifestações musicais do início do século XIX.

O primeiro foi o compositor de uma obra solo para Terzguitar, instrumento antigo, que Fabrício Matos executou com perfeição numa réplica construída pelo luthier Leandro Mombach. Trata-se de um violão de menores proporções, afinado terça acima do violão moderno, o que lhe permite transitar melhor por certas tonalidades, como a de sol maior na qual foi executada a peça. O timbre artesanal do instrumento, e a construção harmônica singela da obra fizeram o casamento perfeito com o ambiente da capela e a ocasião da homenagem a Champagnat.

De Burgmüller foi executado um duo com cello e violão, e de Carulli outro com flauta e violão. Além destes compositores, variações de Beethoven para cello e piano executadas sem a parte do piano - o que proporcionou um ambiente de maior inspiração. O piano, instrumento mor do racionalismo iluminista e da organização capitalista não casaria bem com o ambiente de devoção da noite e, ao transformar o duo num solo de violoncello, as variações de Beethoven transformam-se numa prece singela.

para fechar o programa, duas transcrições: uma peça pianística de Debussy e a Cantilena que é o primeiro movimento das Bachianas nº 5 de Villa-Lobos. (Peço desculpas pelas imprecisões nos títulos das obras, mas não havia programa impresso.) As duas transcrições para trio de flauta, violoncelo e violão, soaram perfeitas. Eu diria que a própria peça original de Debussy soaria como se fosse uma transcrição, após a perfeição tímbrica que foi a versão executada ontem.

O mesmo eu diria para a peça de Villa-Lobos. Sua versão original é para voz e octeto de violoncelos. Por absoluta incompetência prosódica do compositor (e também por incompetência enunciativa da maioria absoluta dos cantores) o texto da versão original é sempre incompreensível. De modo que a versão para flauta captou a alma melódica e descartou um texto já em si descartável. A linha de baixos foi preservada na parte transcrita para o violoncelo (instrumento que Villa-Lobos tocava profissionalmente) e o "recheio" harmônico foi adaptado para o violão (instrumento que fornecia toda a imaginação harmônica de Villa-Lobos).

A direção musical não poderia ser melhor. Fabrício Mattos é um violonista que sabe música, o que é uma coisa rara. Ele escolheu bem o repertório, fez as transcrições de forma perfeita e convidou os músicos perfeitos para a noite. Aliás, flauta e violoncelo costumam fazer muito bem suas partes em duos ou trios. O que normalmente atrapalha é o instrumento harmônico, na maioria das vezes tocado por digitadores e não por músicos. Não foi o caso ontem. Fabrício Mattos soube tirar do violão a exata expressão musical, em absoluta sincronia com seus irmãos músicos apesar dos poucos ensaios. Aliás, um concerto como esse só precisaria de muitos ensaios se os músicos não fossem tão experientes e conhecedores da linguagem que estavam apresentando.

A flauta foi tocada por Fabrício Ribeiro, que é talvez o principal flautista em atividade hoje em Curitiba, apesar de ser bem jovem. Ele foi destaque em outro concerto comentado aqui no blog, fazendo a primeira flauta da Orquestra Sinfônica do Paraná, como músico convidado. O violoncelo ficou a cargo de Tomas Juksch, músico fundador da Camerata Antiqua de Curitiba, duma família de músicos - homem de grande experiência musical e extrema sensibilidade.

Não podia ter sido melhor a noite. Fica a dica para que se acompanhe a programação musical do Marista Paranaense, que está se mostrando uma grande pedida para noites de quinta-feira.

sábado, 17 de maio de 2008

Música dos judeus no Brasil Holandês

A presença de judeus no Brasil e seu impacto na cultura brasileira ainda estão completamente sub-dimensionados. Um autor que afirma isso é Martin Dreher, no 4º volume de sua série da História do Cristianismo, e também em sua história das leituras da Bíblia (veja sobre estes livros aqui). Mas mesmo este autor apenas dá a dica de que houve forte presença de judeus (na verdade cristãos-novos ou cripto-judeus) que praticaram suas festas litúrgicas na América Portuguesa e cuja religiosidade teve profundo impacto no catolicismo popular gestado nos três séculos de colonização portuguesa e depois violentamente reprimido pelo ultra-montanismo a partir de meados do século XIX. (Uma outra dica quente está aqui no Contra-senso)

Vem da musicologia uma bela contribuição ao conhecimento desta presença judaica. Ana Maria Kieffer reconstituiu algumas canções que testemunham a presença judaica: elas estão gravadas no disco Teatro do descobrimento, e as explicações da gravação estão no mesmo texto que explica a gravação dos Cantos Tupinambás.

Três canções são reconstituições de cantos sinagogais registrados no período do domínio holandês em Pernambuco (1630-1655) – único período em que a prática do judaísmo foi tolerada no continente colonizado pelos europeus. Outras duas são aboios recolhidos no nordeste por Mário de Andrade em 1928 – ambos com forte indício de influência judaica no folclore nordestino.

A primeira gravação é um poema de Isaac Aboab da Fonseca, rabino da sinagoga do Recife entre 1642 e 1654. Zecher asiti leniflaot El (1646) é considerado o primeiro poema judaico das Américas. Nesta gravação a melodia é criada e cantada pelo hazan David Kullock, estudioso da cultura sefardita, e complementada por rabeca e cravo (grupo Anima - faixa 14 do disco). O poema ficou assim na tradução de Sami Goldestein:

Memorial em nome de Deus, pois as lágrimas cessaram
Cantarei na minha cidade vivo com todo meu júbilo
Também cantarei sua misericórdia, se não cessarem
Uma canção não conforme Seu tamanho mas com toda minha força.
Pois quem poderia exaltar Suas Maravilhas elevadas
Sobre toda criação acima e abaixo de minha lua?
Será como lembrança para elogiar o Nome de Deus
Para a congregação do Deus Excelso e Rocha de Israel

A segunda música é exclusivamente vocal, um canto-recitado sinagogal – Mi chamocha, poema de autoria do mesmo rabino em comemoração à chegada de navios holandeses com víveres para abastecer a população do Recife faminta devido ao cerco de tropas portuguesas em 1647. Em 1648, nos estatutos da Congregação Tsur Israel, estabelece-se que este poema ou salmo seja recitado na data de celebração da chegada dos navios. Essa forma de recitar cantando é antiqüíssima na tradição sinagogal, e provavelmente foi desta prática que derivou o canto cristão que hoje se conhece (erroneamente) como Canto Gregoriano. (faixa 15 do disco)

A terceira música é o Cântico de Moisés, mencionado no mesmo estatuto de 1648, e cantado nesta gravação com a melodia mantida até hoje na Sinagoga Portuguesa Sherit Israel em Manhattan. Esta região de Nova Iorque (antiga Nova Amsterdã) foi fundada pelos judeus portugueses que fugiram do Recife após o fim do período holandês quando as chacinas e perseguições voltaram com força total. O acompanhamento instrumental (cravo e flauta – grupo Anima) tenta uma referência à harpa de Davi e às flautas dos pastores, bem como à prática dos comerciantes judeus abastados do Recife holandês, que se reuniam em suas casas para tocar instrumentos musicais. (faixa 16 do disco)

As duas cantigas de aboio recolhidas por Mário de Andrade denunciam a presença judaica. Na primeira delas o personagem encomenda ao sapateiro um calçado para a celebração do sábado judaico (faixa 13 do disco). Na segunda, uma referência a um certo “boi judeu” que a autora especula ser uma Torá presente nas casas de judeus do Recife. Pergaminhos de rolo guardados em uma caixa preta com pontas de fora e penduradas na parede, vistas da janela da rua podiam parecer a um cristão a cabeça de um boi chifrudo. Ainda mais quando a resposta do que fosse o objeto (Torá) pudesse ser equivocadamente entendido como toura, conforme uma denúncia anotada contra um cristão-novo em Olinda, 1593 (faixa 17 do disco).

As gravações:

Um canto para a catequese

No mesmo texto em que explica a recriação de cantos tupinambás em seu disco Teatro do descobrimento, Ana Maria Kieffer explica procedimentos para a recriação de um canto usado por Anchieta no processo de catequese. Trata-se da faixa 8 do disco – Quién te visito Isabel/Xe Tupinambá guasú/Mira el malo.

Sabe-se que os jesuítas usaram no processo de catequese adaptar melodias indígenas a canções sacras, ou ainda, usar melodias populares européias que corriam entre colonos e índios adaptando texto religioso. Ana Maria Kieffer remete ao estudo de Rogério Budasz (publicado no vol 17 nº 1 da Latin American Music Review – Spring/Summer 1996.) onde aparece a transcrição da melodia de uma canção ibérica adaptada à catequese por Anchieta.

¿Quién te me enojó Isabel
que con lagrimas te tiene?


Transforma-se, adaptado para a catequese, em:

¿Qiuén te visitó Isabel,
que Dios en su ventre tiene?
Haz-le fiesta mui solemne
Puès que viene Dios en el.

Esta canção é gravada no disco de Ana Maria Kieffer com a melodia encontrada por Budasz, mas sem a harmonização feita por este musicólogo (que respeita a provável forma de execução da época) – talvez por que a autora queira aproximar mais do modo indígena de canto. Intercalada entre duas apresentações da estrofe, aparece cantado (a música deve ter sido criada para este disco) um texto de um personagem de Achieta, que diz em tupi:

Sou o grande Tupinambá
Os companheiros do bispo –
Todos cristãos –
Me temem muito


Ao fim da gravação a autora ainda intercala um texto de Anchieta em espanhol e uma dança de Juan Bermudo (execução instrumental pelo grupo Anima). Tudo para mostrar a riqueza de usos musicais da catequização jesuítica na América Portuguesa. Onde misturaram-se cantos indígenas e cantigas e danças ibéricas profanas, tudo adaptado a textos catequéticos ou apresentações teatrais com fins evangelísticos. A gravação de Ana Maria Kieffer ainda introduz o contracanto de uma flauta indígena.

Eis a música:






Outros posts relacionados:

Os jesuítas e a música na América Portuguesa

Trilha sonora para uma festa antropófaga dos Tupinambás na qual um viajante alemão quase serviu de jantar

Um dos trabalhos mais difíceis e mais importantes para o estudo da música do passado é a recriação sonora. Como fazer ouvir hoje uma música de séculos atrás, quando a notação musical era diferente, os instrumentos musicais e suas técnicas eram diferentes, os músicos eram diferentes, os usos da música eram diferentes, os ouvidos das pessoas ouviam diferente?

Uma das possibilidades é consultar os tratados da época para aprender as corretas técnicas de execução, construir réplicas de instrumentos antigos a partir de figuras ou exemplares existentes em museus, aprender a ler notação antiga ou basear-se em transcrições modernas. Tudo isso pode levar a uma execução autêntica. Ou não.

Já que ninguém poderá saber ao certo como deveria soar a música de tempos remotos, outros músicos se permitem uma recriação mais livre. Foi o que fez Anna Maria Kieffer em seu disco Teatro do descobrimento (esgotado comercialmente, mas disponível aqui), cujos processos de pesquisa e recriação são descritos no seguinte texto:

KIEFFER, Ana Maria. "A flauta de Matuiú: registro, memória e recriação musical das festas no Brasil nos séculos XVI e XVII." in JANCSÓ, István; KANTOR, Iris. (orgs.) Festa. Cultura e sociabilidade na América portuguesa. vol II. São Paulo: Imprensa Oficial/HUCITEC/EDUSP/FAPESP, 2001. p. 891-901.

A primeira explicação do texto remete à faixa 7 do disco – Cantos Tupinambás/Salmo 130.

Ana Maria explica que para recriar a música dos tupinambás baseou-se em relatos de três viajantes: Gabriel Soares de Sousa no seu Tratado descritivo do Brasil em 1587, Jean de Léry em seu Histoire d’um voyage faict en la terre du Brésil autrement dit Amerique (1585) e Hans Staden – que a autora cita da tradução brasileira A verdadeira história dos selvagens (trad. Pedro Sussekind, RJ: editora Dantes, 1999).

Do depoimento de Gabriel Soares de Souza a autora extrai a informação de que os tupinambás o músico gozava de muito prestígio, recebendo até mesmo salvo-conduto para transitar entre inimigos. Mas o observador português caracteriza o canto indígena como desafinado (“de sofrível tom” – na verdade por não ser baseado no sistema melódico europeu), em uníssono, cantado de forma responsiva (um grupo canta o solo e outro responde) e tendo presença de improvisos. Aqui também descobre sobre o uso de percussão – tambor e maracás.

Do francês Léry a autora aproveita melodias de anotadas de cantos indígenas, que ela afirma serem confiáveis pois, apesar de não haver certeza quanto à precisão da notação ocidental para o registro da música indígena, as melodias anotadas por Léry na década de 1580 são confirmadas como autênticas por observadores como Sipx e Martius (que observaram melodias muito semelhantes entre os índios na década de 1810) e Helza Cameau (que fez o mesmo em um estudo da década de 1970). Ana Maria Kieffer também aproveita termos de um glossário tupinambá fornecido por Léry, para servir de texto nas vocalizações que gravou.

No relato de Staden a autora informa-se sobre o fato de que o viajante luterano teria cantado um salmo: Das profundezas do infortúnio rogo por ti. Por informação de segunda mão (na dissertação de mestrado de Paulo Castagna), descobre que Henriqueta Braga, em seu livro Música sacra evangélica no Brasil, afirma ser o Salmo 130 – De profundis, com música composta por Lutero. Kieffer provavelmente não sabe, mas Henriqueta Braga dá esta como sendo a primeira vez que se entoou um cântico da tradição reformada no Brasil, e que Staden teria cantado o hino como possibilidade de conforto espiritual diante da iminência de ser devorado num ritual antropofágico. A beleza da música teria impressionado os tupinambás que desistiram da antropofagia. (Alguns evangélicos fundamentalistas diriam que o “poder de Deus agiu através da música de Lutero”, segurou “os demônios” e salvou o crente do massacre dos pagãos.) O que a própria Henriqueta não informa é que provavelmente isso seja uma bravata de Staden, que apavorou-se diante da morte. E que o espetáculo de pavor provavelmente levou os tupinambás a desistirem de um ritual cujo objetivo não era alimentar-se fisicamente, mas absorver a coragem do inimigo.

Mas Ana Maria Kieffer aproveitou o hino luterano para servir de base, num canto grave em voz masculina, que se destaca no final da música. A introdução é feita por uma flauta indígena tocada por Valéria Bittar (grupo Anima), conforme consultoria de Loike Kalapalo. A técnica vocal é baseada em pesquisas da própria autora entre caiapós e suiás, e outras questões de inflexão musical são baseadas no estudo de Helza Cameau.

Eis a música:

sábado, 3 de maio de 2008

Um balé de Prokofiev

Não sei a explicação, mas os compositores russos se destacam entre as obras primas da música de balé. Desde o clássico Tchaikovski, passando pelo revolucionário Stravinski, e incluindo Prokofiev.

Entre as obras que colocam este último em destaque no repertório de concerto estão o poema sinfônico Pedro e o lobo (uma fábula musical que apresenta os instrumentos da orquestra às crianças), a música do filme Alexandre Nevsky de Eisenstein (para a qual também existe uma versão de concerto) e este balé Romeu e Julieta.

Há outras obras interessantíssimas no catálogo deste compositor. Das que conheço posso mencionar ao menos a Sinfonia nº 1. Mas não há dúvida que se Prokofiev tivesse composto apenas a música de Romeu e Julieta já seria suficiente para merecer destaque no repertório das orquestras.

Neste fim de abril e começo de maio, o balé foi apresentado no Teatro Guaíra, em Curitiba, com o Balé Teatro Guaíra e a Orquestra Sinfônica do Paraná. A orquestra foi regida pelo maestro convidado Andrea di Mele. A coreografia foi dirigida por Luis Fernando Bongiovanni.

A obra é muito bem escrita. Prokofiev domina com perfeição a orquestra, expandindo a variedade instrumental em relação à orquestração tradicional, que se baseia nos instrumentos de arco. Quando se escutam obras orquestrais do século XVIII ou XIX, a parte mais substancial da música está nos violinos e nos seus companheiros de naipe – violas e violoncelos, com ligeiro reforço nos graves feito pelo contrabaixo. É o caso de obras de Vivaldi, ou Haydn, Mozart e Beethoven.

Após a Sinfonia Fantástica composta por Berlioz em 1830, a orquestra nunca mais foi a mesma. Se as cordas continuaram a ser a base da orquestra para muitos compositores, por outro lado, os sopros ganharam cada vez mais importância. É o caso do balé de Prokofiev, composto em 1935 e estreado, com algumas modificações feitas pelo compositor, em 1940. A orquestração inclui as cordas de arco tradicionais, madeiras reforçadas (flautim e duas flautas, dois clarinetes, clarone e sax tenor, dois oboés e dois fagotes), metais vitaminados (6 trompas, 4 trompetes, 3 trombones e tuba), harpa, uma participação incidental de bandolim, piano obligato (quando ele compõe o naipe de percussão da orquestra, e não aparece como solista) - cujo executante se revezava também na celesta, e percussão (não vi bem por causa do fosso, mas me pareciam 3 músicos, a usar principalmente a caixa clara, os tímpanos e o xilofone).

Prokofiev transformou os sopros em protagonistas. As melodias praticamente nunca estavam nas cordas, que foram usadas principalmente para criar um interessantíssimo colchão harmônico, acordes construídos de modo a fazer com que muitas vezes o som das cordas parecesse o de um sintetizador eletrônico. As melodias revezaram-se quase sempre entre flauta, oboé ou clarinete, com belos solos do fagote na região aguda. Participações destacadas também do sax tenor. Combinações de timbre inusitadas como um solo de flauta na região médio-aguda, acompanhada oitava abaixo pelas violas. Ou um uníssono feito entre a região grave do sax tenor e a aguda do fagote. Ou as muitas vezes em que o clarone tocava em uníssono com os contrabaixos.

Aliás, a linha de baixos teve papel preponderante em muitos momentos da música. Os contrabaixos tinham vida própria, trabalhando mais em conjunto com os sopros do que com as cordas. A disposição da orquestra organizada pelo maestro favoreceu os belos efeitos estereofônicos da obra: um coro de trompetes bem à esquerda do público. Entre eles e os violinos estavam as trompas. Trabalharam muito nesta música – alternando entre a suavidade típica das trompas e a agressividade que normalmente cabe aos trompetes. O uso da surdina nas trompas causou belo efeito. Ao lado das trompas vinham duas fileiras de madeiras, atrás das violas e bem no centro do fosso (clarinetes, sax e fagotes atrás e flautas e oboés na frente). Atrás das madeiras a percussão. Chegando ao lado direito do público harpa, celesta e piano. Mais à direita o coro dos trombones e tuba, seguidos pelos contrabaixos. Às cordas ficaram mais próximas ao maestro, como de costume, apenas os contrabaixos ficaram separados pelos trombones.

Acredito que, para as músicas que são mais fortemente baseadas no naipe das cordas, as orquestras brasileiras levam grande desvantagem sobre suas congêneres européias ou norte-americanas. Não temos tradição de formação de instrumentistas de arcos. Não temos capilaridade – são pouquíssimos praticantes destes instrumentos no Brasil, o que torna difícil montar um time de 30 ou 40 músicos de altíssimo nível. Já os sopros, além de precisarem de uma menor quantidade de músicos, o que torna mais fácil formar naipes de alto nível, contam com uma grande difusão no Brasil. Graças à tradição dos grupos de choro temos flautistas e clarinetistas em abundância. Trompetes e trombones também são bem distribuídos, devido à existência de bandas marciais na maioria dos municípios brasileiros. Assim, nossa orquestra provavelmente não deve nada em qualidade sonora a outras do hemisfério norte quando se trata de uma obra como a de Prokofiev, na qual os sopros têm papel preponderante.

Quem assistiu aos concertos (um total de oito récitas que acabam domingo, dia 4 de maio – ainda dá tempo de ver), foi brindado com a caprichada sonoridade protagonizada por músicos que desempenharam os trechos de maior destaque na obra. O saxofone de Rodrigo Capistrano, a flauta de Fabrício Ribeiro e o inesperado bandolim de Roger Burmester, músicos convidados para o concerto. E os titulares da orquestra que também brilharam – o clarone de Maurício Carneiro, os clarinetes de André Erlich e Marcelo Oliveira, o oboé de Paulo Barreto. As trompas chefiadas por Edivaldo Chiquini e os trombones por Sílvio Spolaore.

A coreografia – e disso falo sem conhecimento técnico – foi excelente. Me parece que Bogiovanni contextualizou muita coisa, colocou propostas mais contemporâneas em vários passos. Não sei se foi idéia dele, mas colocar um bailarino homem (Rodrigo Mello) no papel da ama Julieta deu ótimo efeito – além de dar o toque de humor que foi o ponto alto da coreografia. Me parece que os bailarinos que dançaram são todos do corpo do Balé Guaíra, com qualidade que só pode ser louvada por um apreciador leigo no assunto como eu.


Ao escutar esta obra musical, não pude deixar de pensar num dilema que incomodou a crítica musical no século passado. No Ocidente a vanguarda musical passou a ser erigida em símbolo de liberdade – liberdade de criar e de inovar, sem interferência política. Uma crítica direta às imposições estéticas do realismo socialista, política oficial dos regimes comunistas durante a Guerra Fria. Mas hoje, já com certo distanciamento, e sem a necessidade de se comprometer com um ou outro lado desta disputa ideológica, pode-se pensar que a liberdade estava do outro lado. Sem a ditadura da idéia de que toda a obra tem que inovar, tem que fazer “avançar” as técnicas de composição, os compositores do leste europeu (e também os de outros países periféricos como os da América Latina) atingiram a verdadeira liberdade estética: compor música por que gostam de música. E para um público que vai ouvir música por que gosta de música. E fica combinado que ninguém precisa compor música para dizer que inovou, que fez avançar a técnica; e que ninguém precisa ouvir música para fingir que entendeu alguma coisa.

Acredito que se não fosse a sensibilidade de compositores como Prokofiev, no século XX a orquestra sinfônica teria se tornado peça de museu, condenada pela irrelevância elitista e pelo hermetismo de vanguardas que têm como lema o desprezo pelo grande público.

sábado, 19 de abril de 2008

Os concertos para violão de Radamés Gnattali

Já terminei de ouvir a série sobre o violão espanhol nos programas radiofônicos Violão com Fábio Zanon. Surpreendente. Uma riqueza musical exorbitante e desconhecida. Zanon apresentou compositores que o público ignora, explicou sua música, disponibilizou e divulgou gravações pouco conhecidas. Um grande serviço.

Após os 13 programas sobre o violão espanhol, começo agora a ouvir a série (a partir do programa 14) sobre o violão brasileiro. Se o violão foi inventado na Espanha, e teve na cultura espanhola sua grande fonte de material musical, acredito que no Brasil ele tenha ganhado uma nova dimensão.

A série sobre o violão brasileiro de Fábio Zanon começa com os concertos para violão e orquestra de Radamés Gnattali. São cinco concertos ao todo, incluindo um para 2 violões, oboé e orquestra. As gravações são apresentadas em 2 programas. O link para a página do programa está aqui. Ou, quem preferir, pode entrar direto no servidor de arquivos aqui e aqui.

Os programas foram veiculados na rádio em 2006, aproveitando o ensejo de comemorar o centenário de nasicmento do compositor. Aliás, como ressaltou Fábio Zanon, centenário que passou quase em branco. Uma danada duma injustiça com um dos maiores representantes da cultura brasileira.

Radamés tem sido injustamente omitido no panteão canônico da música brasileira. Por que é um compositor difícil de situar. Não compôs canções, por isso fica de fora da MPB. Trabalhou muito com o choro, mas os chorões praticam um tipo de "nacionalismo por subtração", para usar um termo de Roberto Schwarz, que exclui o internacional. Como Radamés teve ligações muito próximas com o jazz norte-americano, fica sumariamente excluído também do panteão do choro. Que lhe resta como indicação para figurar na história dea música brasileira? As composições de concerto não merecem crédito por que o compositor fica sempre estigmatizado por "mexer com música popular", ou por não ter uma estética composicional suficientemente vanguardística para os cânones modernistas. Finalmente, a atividade na qual Radamés foi indiscutivelmente o mestre dos mestres, o arranjo ou orquestração, não recebe ainda muito crédito no Brasil. Afinal, ninguém sabe ainda o lugar do arranjador no espaço cultural brasileiro - se merece o título de criador ou se é mero adaptador. Se têm proposta estética ou segue meramente os ditames da indústria fonográfica/radiofônica/televisiva.

Por essas e outras Radamés tem sido injustamente desalojado do lugar que merece na memória musical brasileira. E por isso a divulgação de seus concertos para violão nos programas do Fábio Zanon vieram em boa hora. Os cinco concertos revelam um compositor que faz música do melhor tipo. Desintoxicado da preocupação de ser "vanguarda", deu verdadeira contribuição para criar uma nova linguagem. Da mistura do samba, do jazz e da música de concerto mais conservadora e neo-clássica, surge a linguagem verdadeiramente moderna. Por que tem discurso. E porque seu discurso pode ser ouvido/entendido por um amplo espectro de público.

Quando o discurso que analisa a música brasileira deixar de procurar os heróis do nacionalismo modernista ou da composição de vanguarda, ou da canção, ou do choro autêntico, talvez possamos descobrir o real valor de Gnattali. Um verdadeiro herói da diversidade, da mestiçagem musical, do multi-culturalismo musical. Um compositor que dominou como poucos o ofício. E, acima de tudo, autor de várias das mais belas músicas que já foram tocadas neste país.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Música na corte portuguesa no Rio de Janeiro

Neste ano em que se completam 200 anos da corte portuguesa no Rio de Janeiro, estamos em um bom momento para se refletir sobre as implicações históricas e culturais deste momento fundador do nosso país.

O Melômano vai publicar vários posts tentando acompanhar os trabalhos acadêmicos que vêm surgindo nos últimos tempos, tratando da música nesse período. São muitos e de ótima qualidade. Começamos pela seguinte tese, defendida no doutorado em história da UFF:

AZEVEDO E SOUZA, Carlos Eduardo de. Dimensões da vida musical no Rio de Janeiro: de José Maurício a Gottschalk e além, 1808-1889. Tese de doutorado, UFF, 2003.

Quando conheci esta tese, há dois anos atrás, ela foi para mim uma grande descoberta, pois as informações disponíveis estavam em obras de qualidade histórica muito duvidosa - o compêndio de História da Música mais atual no Brasil era o de Vasco Mariz, escrito em 1981 e baseado numa concepção historiográfica há muito superada, pois enfatiza biografias de músicos e descrições técnicas de obras, com pouca ou nenhuma análise do meio musical e cultural do período.

A tese está disponível na biblioteca digital da UFF. (Mas que raio! Não consigo mais achar o link. Passei um e-mail para o ator. Até o Lattes dele está desatualizado pra caramba! Quando eu descobrir isso de novo, ponho aqui no blog...)

Dividirei a resenha em partes, a primeira tratando sobre a Capela Real portuguesa. Posteriormente irei comentar outros aspectos do trabalho, relativos ao período regencial e ao período imperial.

I - A Capela Real portuguesa

A Capela Real portuguesa existe pelo menos desde o século XIII, ainda de forma itinerante, acompanhando as cortes feudais em périplo por diversas igrejas, até fixar-se em Lisboa no século XV. Com a ascensão ao poder da dinastia dos Bragança, em 1640, inicia sua fase áurea. Segundo o autor, D. João IV, o primeiro monarca português após a União Ibérica, tinha recebido instruções claras de seu pai (em testamento) para manter a sua Capela. Foi também autor de um tratado sobre música e construiu o que provavelmente era a principal biblioteca de música da Europa, destruída pelo terremoto de 1755. (p.48) O autor também explica que no século XVIII, abastecida pelo ouro do Brasil, a monarquia portuguesa investiu ainda mais na Capela, contratando músicos italianos e mandando músicos locais para estudar na Itália. (p. 49)

Em 1730 a Capela Real portuguesa tinha 26 cantores italianos. Domênico Scarlatti foi mestre de capela em Lisboa entre 1720 e 1729. No período pombalino (após 1750), quando o Estado passou se organizar pelos moldes absolutistas e disputar o poder com as instâncias religiosas, ocorreu uma derrocada da música litúrgica e do padrão da polifonia religiosa portuguesa, tornando-se dominante o gosto musical mundano da ópera napolitana, que passa a ditar inclusive o estilo musical da composição de música sacra.

Outros renomados compositores napolitanos que atuaram em Portugal foram David Perez, que foi mestre-de-capela a partir de 1752 e Nicolo Jommelli, que não aceitou cargo em Portugal mas assinou contrato para fornecimento anual de óperas e música litúrgica. Além disso, havia uma grande presença de cantores e músicos italianos, que fizeram com que atividade musical em Portugal (tanto ópera como música litúrgica) estivesse sempre atualizada em relação à moda criada na Itália.

Por essa escola napolitana de composição formou-se toda a nova geração de compositores portugueses: João de Souza Carvalho (1745-1798), que estudou em Nápoles e foi professor de toda uma geração de compositores, como Antônio Leal Moreira (1758-1819), João Domingos Bomtempo (1775-1842) e Marcos Portugal (1762-1830).

Esta tradição da Capela Real portuguesa transferiu-se em 1808 para o Rio de Janeiro, juntamente com a vinda do príncipe regente. Boa parte dos músicos italianos dispersou-se pela Europa, mas muitos vieram atrás da vida da corte após 1810.

O autor narra as peripécias para constituir a Capela Real no Rio de Janeiro, o que incluiu dificuldades com local de funcionamento e com disponibilidade de músicos, sendo que os principais (inclusive o mestre-de-capela desde 1800 - Marcos Portugal) tinham ficado na Europa. O grosso de músicos e cantores começou a vir de portugal em 1809, conforme relação de nomes dada pelo autor à página 58. O autor também relata o aumento gradativo das despesas com a contratação de músicos, tentando manter a alta qualidade artística da Capela Real. Para tanto foram trazidos a partir de 1817 vários castrati italianos para atuarem como solistas - sabendo-se que trabalharam com a Capela Real e também nos teatros de ópera do Rio de Janeiro. O ápice do efetivo de músicos da Capela Real deu-se em 1824, com um total de 64 músicos assalariados da monarquia portuguesa.

O autor dedica algumas páginas a discutir o impacto da chegada de Marcos Portugal ao Rio de Janeiro em 1811. Primeiro mostra a ambigüidade das biografias deste que era o compositor preferido da família real, não sendo possível determinar com clareza os motivos por que ficou ainda 3 anos em Portugal, após a vinda da corte. O fato é que sua chegada pôs fim ao período de maior prestígio do carioca José Maurício Nunes Garcia, que assumiu o cargo de mestre-de-capela enquanto não estava presente o ilustre lisboeta. Nunes Garcia estava acostumado a um estilo mais austero de música religiosa que ficou totalmente desprestigiado com a mudança de gosto provocada pela chegada da corte. (O tema da mudança estilística de Nunes Garcia e do próprio gosto musical no Rio de Janeiro tem sido alvo de vários estudos importantes, que vou comentar aqui no blog em outras oportunidades.)

Existe também uma polêmica sobre a atitude de Marcos Portugal em relação a seus colegas de atividade. Todos os biógrafos de Nunes Garcia apontam o português como um vilão invejoso e capaz de tudo para destruir o rival e também o austríaco Neukomm que esteve no Brasil entre 1816-1821. Mas segundo o autor a documentação disposível não permite conclusões definitivas.

Após o período áureo durante a estada da corte portuguesa, a partir da independência a Capela Real transformou-se em Capela Imperial e entrou em franca decadência, segundo o autor. Os salários começam a sofrer atrasos e as renovações de contrato eram sempre acompanhadas de redução na remuneração. Marcos Portugal foi sucedido no cargo por Fortunato Mazziotti e Nunes Garcia por Simão Portugal (irmão de Marcos). Muitos comentaristas atribuíram a decadência da vida musical à mediocridade destes dois músicos o que é falso. Para o autor ocorreu mesmo uma crescente dificuldade financeira que culminou com a virtual dissolução da Capela durante o período regencial (1831-1840). (Sobre este período regencial especificamente, há outra ótima tese que vou comentar aqui no blog em outra oportunidade.) Nesta época os músicos foram obrigados a procurar funções eclesiásticas, oferecer-se nos jornais para dar "liçoens de múzica" ou mesmo emigrar para Buenos Aires e Montevidéu.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Chacona e passacalia

Escrevo este post para responder a uma pergunta instigante de meu colega Francisco Wildt, surgida a partir de uma aula de harmonia, disciplina pelo qual ele é responsável no departamento de música da FAP (Faculdade de Artes do Paraná).

Este post é uma resenha do verbete correspondente no dicionário de música Harvard, que considero o melhor dicionário de música em um volume. Obviamente não conheço todos que existem, e este já é um pouco antigo – mesmo assim, é bem melhor que outros recentes que eu conheço.

“Chaconne and passacaglia” in APEL, Willi. Harvard dictionary of music. Cambridge MA: Harvard UP, 1944. p. 126-128.

Chacona e passacalia são duas formas da música barroca, proximamente aparentadas, ambas com característica de variação contínua sobre um tempo ternário lento, e com um ritmo harmônico lento (geralmente um acorde por compasso).

O autor diz que os termos foram alvo de fúteis discussões sobre sua origem e significado, bem como sobre a diferença entre eles. Os compositores barrocos usavam ambos os termos “indiscriminadamente” – ou seja, para os compositores tanto fazia chamar de chacona ou passacalia uma peça.

Para o autor, isso não impede que se busque maior precisão no uso atual destes termos. A proposta de APEL é distinguir as duas formas pela presença ou não de basso ostinato. Passacalia quando houver, e chacona quando não. Ocasionalmente o ostinato da passacalia pode estar na voz aguda e não no baixo.

Comumente o ostinato é um tetracorde diatônico descendente:






Ou sua variação cromática:



No entanto, esta distinção, possível de ser adotada hoje em dia – passacalia como variação baseada em um baixo ostinato e chacona como variação baseada em um esquema harmônico – não existia na prática dos compositores barrocos.

Sob a denominação moderna de passacalia poderiam ser classificadas passacalias de Bach e Couperin, bem como chaconas de Buxtehude, Kerll e Plachelbel, além de composições vocais como o dueto Pur ti miro de Monteverdi.

Por outro lado, podem ser classificadas modernamente como chaconas as Cento partite sopra il passacaglio de Frescobaldi, a Passacaglia de George Muffat e a famosa Chaconne de Bach. Há ainda exemplos de chacona em Beethoven (Variações em Dó menor op. 32), Brahms (movimento final da 4ª Sinfonia), Busoni (Toccata: Prelúdio, Fantasia, Ciaccona, de 1921) e Krenek (Toccata und Chaconne op. 13).

Os compositores do barroco francês ainda usavam freqüentemente os termos chaconne e passecaille para formas diferentes como o rondó. Exemplos desse uso são a Chaconne de Chambonières, a Chaconne-rondeau de d’Anglebert, e a Passecaille do 2º volume das Pièces de clavecin de Couperin.

Sobre a origem dos termos, APEL especula que a chacona era provavelmente uma dança “selvagem e sensual” importada do México para a Espanha no século XVI. Depois de importada para a Europa teria perdido seu caráter “desenfreado”, como aconteceu com a sarabanda e (300 anos mais tarde) o tango. A passacalia também foi originalmente uma dança, e o termo pode ter surgido da pasacalle, uma canção de rua espanhola.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Grupo Banza

A música nos primeiros séculos da colonização portuguesa na América ainda é um grande mistério. Sabe-se algumas informações ainda muito fracionadas, e a documentação é esparsa e de difícil acesso. Em outro post escrevi sobre a música dos jesuítas, com base na pesquisa de doutorado do prof. Marcos Holler, que foi toda feita com informações secundárias, pois não sobreviveram partituras.

Sei que existe um trabalho também de reconstituição da música das festas indígenas, festas religiosas portuguesas e festas da colônia judaica no período holandês em Pernambuco. Este disco, dirigido e gravado pela pesquisadora e cantora Ana Maria Kiefer está, até onde eu sei, esgotado. Infelizmente.

Mas há ainda uma outra informação muito relevante sobre a música do período. O poeta e cronista Gregório de Matos deixou muita informação sobre a música feita nas ruas de Salvador do final do século XVII. Com base nestas informações e em partituras localizadas em arquivos portugueses, o pesquisador Rogério Budasz, professor do curso de Música da UFPR, reconstituiu a "música do tempo do Boca do Inferno", gravada em disco pelo grupo Banza, por ele dirigido.
É um trabalho pioneiro, uma grande informação histórica e também um grande trabalho artístico. Merecidamente recebeu patrocínio da Petrobras e do SESC, respectivamente, para duas trunês pelo Brasil. Também merceidamente, o disco foi lançado internacionalmente pelo selo NAXOS, após algum tempo de circulação em gravação independente.

A audição do disco nos revela este fantástico "triângulo atlântico" do qual a América Portuguesa foi um dos vértices. (Os outros dois foram a África Ocidental e a Penísula Ibérica.) Instrumentos tradicionais do barroco europeu - violas, alaúdes, machetes, flauta, violino, mesclam-se às percussões afro-brasileiras. Este som sui-generis nos faz repensar os nossos mitos de identidade nacional através da música, nos fazendo lembrar o quão cosmopolita e multi-cultural é esse nosso pedaço de chão desde o início da colonização portuguesa.

terça-feira, 25 de março de 2008

Os jesuítas e a música na América Portuguesa

Os jesuítas tiveram papel primordial na reforma católica do século XVI, bem como na expansão missionária que se fez junto com o colonialismo ibérico. Entre os índios da América os jesuítas desenvolveram intensa atividade musical. A que aconteceu nas missões do Paraguai e da Bolívia já é mais conhecido, inclusive com a presença de compositores de renome como Domenico Zipoli.

Mas a atuação na América Portuguesa é ainda uma grande incógnita. Que começa a ser desvendada na tese de doutoramento de Marcos Holler:

HOLLER, Marcos Tadeu. Uma história de cantares de Sion na terra dos brasis: a música na atuação dos jesuítas na América Portuguesa (1549-1759). Tese de doutorado, Campinas, IA-UNICAMP, 2006.

Holler é professor do departamento de música da UDESC, em Florianópolis. Acredito que este está se tornando um dos grandes departamentos de música do Brasil, com a presença de outros grandes professores/pesquisadores como Acácio Piedade (etnomusicologia) e Sérgio Freitas (harmonia) – para citar apenas os nomes que me vêm de imediato à cabeça.

A tese está disponível em arquivo eletrônico aqui , na biblioteca digital de teses e dissertações da UNICAMP.

Aqui no Melomano faço uma resenha em três partes:

Os jesuítas e a música na América Portuguesa - I

Os jesuítas e a música na América Portuguesa - II

Os jesuítas e a música na América Portuguesa - III

Os jesuítas e a música na América Portuguesa - I

A tese é um calhamaço de 950 páginas, das quais 700 páginas compõem um segundo volume de documentos transcritos, o que é um grande serviço a outros pesquisadores que podem consultar o material sem precisar deslocar-se até os arquivos. Aliás, o deslocamento aos arquivos foi uma atividade que deve ter sido penosa a Holler, pois foram consultados documentos originais em arquivos de Portugal, Roma, Vaticano, São Paulo e Rio de Janeiro, além de coligidas informações em milhares de páginas de documentos já publicados.

Holler faz um levantamento exaustivo de fontes, tentando suprir uma quase completa ausência de trabalhos que tratem da música feita durante o trabalho missionário dos Inacianos. Em sua banca estiveram dois grandes especialistas em música da América Portuguesa: Paula Castanha (UNESP) e Rogério Budasz (UFPR).

As limitações do trabalho estão na ótica musical que lhe dada. Explico-me. O autor não tem traquejo de historiador. A tarefa hercúlea de coligir documentos é altamente louvável, ainda mais que ele os coloca à disposição do leitor. Mas o tratamento dado aos documentos fica aquém do possível, até do desejável, eu diria. Mas isto seria cobrar do autor algo que estaria além da sua proposta e acima do seu preparo. Fica então a recomendação para historiadores de formação se debruçarem sobre o tema, trazendo as contribuições pertinentes.

Os jesuítas e a música na América Portuguesa - II

O trabalho começa com uma história da Companhia de Jesus e de sua atuação nas terras portuguesas da América. Obviamente, esta parte do trabalho é de segunda mão – uma síntese de outras obras que já tratam do tema. Falta o traquejo de historiador para tratar, por exemplo, do tema das discussões religiosas e do contexto intelectual no qual os jesuítas surgiram no século XVI. Falta também um alcance mais amplo na explicação da expulsão dos jesuítas como parte da política pombalina.

A maior parte do texto é de listagem, relato, transcrição e citação de documentos. Há uma seção em que o autor relata todos os colégios e igrejas fundados pelos jesuítas nas terras portuguesas (ficam excluídas as regiões missioneiras que hoje pertencem ao Rio Grande do Sul, mas que na época eram terras espanholas) – a faixa litorânea que vai do Pará a Santa Catarina. Há também outra seção em que o autor discorre sobre todos os instrumentos musicais mencionados nos documentos, sejam cartas ou relatórios produzidos pelos padres ou sejam os inventários civis feitos após a expulsão dos jesuítas das terras portuguesas.

Há ainda uma seção em que o autor comenta as disposições sobre o uso da música nos vários regulamentos da Companhia de Jesus na Europa. Aqui, é curioso descobrir que Loyola proibia seus religiosos de fazerem música, para que não perdessem o tempo que deveriam dedicar à atividade missionária e à assistência. Os grupos jesuítas europeus que mantiveram o uso da música o fizeram à revelia de determinações superiores, o que ocorreu principalmente em terras alemãs. Talvez pelo prestígio que lá tiveram os hinos luteranos, aqueles missionários católicos não poderiam deixar de oferecer também sua própria forma de música.

Mas a parte do trabalho que é realmente mais interessante é o trecho em que o autor analisa o uso que os jesuítas fizeram da música em suas atividades na América Portuguesa. Este é verdadeiramente o objeto do trabalho, apesar de aparecer um pouco tarde. Esta é a parte final do trabalho, e está nas páginas 149 a 205.

Holler então demonstra como:

A prática musical é permitida como uma ferramenta de conversão do gentio; nos estabelecimentos urbanos, pode ser utilizada em eventos sacros, desde que seja restrita a determinadas ocasiões, e que não seja realizada pelos padres, para que estes possam ocupar-se do cuidado com o bem espiritual. (p. 149)

O autor sugere que o uso da música pelos jesuítas tenha sido uma conseqüência natural da atração que os índios sentiam por ela. O ensino de música aos índios tornou-se uma das estratégias. O mais comum era os padres “adotarem” meninos índios, assim como já faziam com órfãos vindos de Portugal, ensinando-lhes música, entre outras coisas. A formação de índios músicos também ajudava a fazer contato com tribos hostis, pois eles eram levados como espécie de embaixadores dos padres.

Holler demonstra que os jesuítas perceberam que era muito mais efetivo usar a cultura indígena para a catequização, por isso eles empregavam os instrumentos musicais e as melodias indígenas para cantar os cantos sacros católicos.

O regulamento dos jesuítas proibia os monges de dedicarem-se à atividade musical, para não lhes tomar o tempo que deveria ser dedicado às atividades estritamente religiosas. Por causa disso, eles passaram a ensinar música aos índios para que estes assumissem a função de músicos durante a liturgia nos aldeamentos. Já nas regiões urbanas, as restrições à participação dos jesuítas nas atividades musicais eram seguidas mais estritamente. Por isso, segundo Holler, a documentação menciona sempre música feita por elementos externos nos eventos musicais dos colégios jesuítas – geralmente beneditinos ou carmelitas, ou até músicos profissionais contratados. Pelas mesmas razões o ensino de música nos colégios e seminários jesuíticos era feito por pessoas externas à ordem.

Os jesuítas e a música na América Portuguesa - III

O panorama da música feita em paralelo às atividades missionárias jesuíticas na América Portuguesa é muito difícil, especialmente por não existirem documentos musicais – não sobreviveram partituras do período. É por isso que Holler só pode conjecturar a partir de informações secundárias – os instrumentos utilizados, as ocasiões e o tipo de música que era feita.

Tentando fazer uma síntese das informações trazidas pelo autor, podemos dizer que os instrumentos utilizados eram principalmente flautas, charamelas (instrumentos de sopro de madeira ou metal em famílias de várias vozes, incluindo oboé e sacabuxa), gaitas (de foles), violas (parentes do violão moderno), e órgão. Em geral os instrumentos eram usados para dar sustento harmônico às vozes cantadas. Estas eram ou usadas em cantochão (canto gregoriano) ou em “canto de órgão” (canto em vozes, silábico e homofônico). As ocasiões em que se fazia música nos estabelecimentos jesuíticos eram especialmente os ofícios de vésperas, as procissões e ladainhas, os funerais e as missas cantadas (em dias especiais do calendário litúrgico). Havia ainda muitas ocasiões profanas para o uso da música. Representações teatrais - como autos, diálogos, comédias e tragédias, cerimônias de formatura nos colégios (láureas), e também “recebimentos” cerimônias indígenas de saudação à chegada de visitantes – costume mantido pelos jesuítas.

No final do trabalho o autor faz uma comparação com as missões jesuítas espanholas no Paraguai, explicando porque a atividade musical ali foi muito maior na América Portuguesa. Não sei porque o autor não comentou também sobre as missões da região de Chiquitos, no chaco boliviano, onde houve também atividade musical muito intensa e documentos que sobreviveram até nossos dias. As razões fornecidas pelo autor são principalmente duas: o maior isolamento das missões espanholas e o maior número de músicos formados entre os padres que compuseram tais missões. No Paraguai, os jesuítas construíram os aldeamentos o mais longe possível dos colonos brancos. Isso foi feito para proteger os índios, mas permitiu também um maior desenvolvimento do trabalho de catequização e os correlatos trabalhos de educação e de música. No Brasil, por causa da proximidade com centro urbanos, os índios eram sempre requisitados a deixar os aldeamentos para executar serviços diversos.

Este isolamento das missões espanholas também favoreceu a sobrevivência dos documentos. Na América Portuguesa à expulsão dos jesuítas em 1759 seguiu-se a destruição de seus documentos. Somente sobreviveram os que tinham sido enviados à Europa. Já nas missões espanholas, a dificuldade de acesso fez com que as partituras ficassem na mão dos índios após a expulsão dos jesuítas espanhóis em 1767. Foi o fato de terem ficado em mãos indígenas que permitiu aos documentos sobreviverem até hoje.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Teresa

Revista de literatura brasileira do Departamento de Letras da USP, seu número 4/5, de 2003 (publicado pela Editora 34) é dedicado inteiramente ao tema Literatura e Canção. Um número clássico, com uma série de artigos imperdíveis, versando sobre essa que é a grande contribuição do Brasil ao mundo: a canção brasileira.

Sem respeitar a ordem das páginas, e propondo um roteiro de leitura, eu diria que a revista começa com um documento: a conferência de Caetano Veloso no MAM em 1993 (p. 307-339). O texto é uma reflexão sobre o tropicalismo e o papel do movimento para complexificar o debate cultural nos anos 1960, pois este debate, segundo Caetano, vinha sendo atrapalhado pelo simplismo do que ele chama “esquerda festiva”. Como sempre Caetano – texto polêmico, culto e esclarecedor. Importante de ser lido, apesar de um pouco datado (lida com a questão da posição subalterna do Brasil na nova era de hegemonia norte-americana e com o desmonte das políticas culturais existentes pelo governo Collor).

Seguindo um certo fio de lógica, pode-se ao texto de Ivã Carlos Lopes e Luis Tatit – Ordem e desordem em “Fora da ordem” (p. 86-107), pois analisa uma canção de Caetano Veloso que corresponde exatamente ao momento histórico da conferência proferida no MAM. Tatit é o autor de um método analítico conhecido como “semiótica da canção”, que vem ganhando reconhecimento por ser um método analítico oriundo dos campos da lingüística e da teoria literária que considera a canção como manifestação literária, mas incorpora o parâmetro sonoro das alturas como elemento de análise. Assim, a interessante análise da canção de Caetano serve para compreendê-la como peça lítero-musical, demonstrar a utilidade do método e também para demonstrar o completo absurdo de analisar uma canção como se ela não fosse música e sim apenas poesia.

O mesmo método é usado com propriedade em outros textos da revista. O interessante é que todos estes autores demonstram como se usa um método analítico. Não é uma fórmula para se obter respostas. Em outras palavras, não basta ter um método e depois ligar o “piloto automático”. Análise musical ou literária é erudição, é feeling, é relação entre diversos saberes, interlocução entre diversas culturas, diversos textos, diversos mundos. É por saber disso que Fernando Mesquita analisa tão bem a canção Cores vivas de Gilberto Gil (p.108 – 129). É por saber disso que Arthur Nestrovski consegue explicar tão bem Águas de março, de Tom Jobim, que ele apresenta como O samba mais bonito do mundo (p. 130-143) – sem usar o método de Tatit, mas mostrando que cada canção precisa que se forje para ela o método ideal específico. Nestrovski vai um passo além, pois relaciona poesia, melodia, harmonia, timbre e nuances de diferentes intérpretes para esclarecer a obra em questão.

Justamente o livro em que Tatit propõe seu método analítico (O cancionista. Composição de canções no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1996.) é resenhado pelo pesquisador e professor britânico David Treece (p. 332-350). Com o olhar de estrangeiro, Treece é capaz de encontrar a grande contribuição de Tatit: muito além de um método analítico que aprofunda a compreensão do elemento canção, a abordagem semiótica de Tatit serviu também para permitir novos caminhos na compreensão da música brasileira. E a novidade destes caminhos, para Treece, está na possibilidade de se desvincular do projeto nacionalista como chave hermenêutica e valorativa da canção, que acabou por desembocar na criação do rótulo MPB e da sua valoração como música brasileira por excelência, apesar de representar apenas uma pequena parcela de apreciadores musicais de classe média intelectualizada, num país com predominância de ouvintes pobres e pouco escolarizados, cujo gosto musical vem sendo desprezado pelos que escrevem a história da música brasileira.

Aliás, a exaltação desta música das classes subalternas, que ficou esquecida a partir da Bossa Nova e não entrou na composição do campo da MPB – é o programa político subjacente a toda a obra do historiador José Ramos Tinhorão. Sua trilogia A música popular no romance brasileiro é resenhada por Roberto Alves (p. 351 – 357) que demonstra que o programa político de Tinhorão atrapalha sua compreensão das obras literárias pois Tinhorão não só espera, mas exige, que os romancistas deveriam ter pensado suas obras como documento histórico e, principalmente, documento histórico da cultura popular. Tentando buscar nos romances o que eles não são, nem devem ser, Tinhorão prejudica o excelente trabalho de pesquisa documental, que, mesmo assim, resta sendo uma leitura importante e esclarecedora – desde que o leitor tenha o devido cuidado.

Se Tinhorão busca a relação entre literatura e história, e entre literatura e música, outros autores também o fazem nesta revista. Afinal é uma revista de literatura, e a abordagem da canção aparece aqui a propósito de sua intersecção com a literatura. Por isso Renata Mancini analisa literariamente a canção Homenagem ao malandro de Chico Buarque e a contrapõe à técnica literária usada para construir o romance Estorvo (p. 144-165). A autora mostra a indeterminação como elemento constituinte em ambas as obras – o que é a grande malandragem de Chico Buarque como compositor e escritor. Outro romance de Chico Buarque (Budapeste) é resenhado por Zsoze Mikhail (p. 394 – 397).

A relação entre literatura e música continua a ser explorada nos texto de Ulisses Infante, que analisa a música popular brasileira vista pelos olhos do escritor modernista Murilo Miranda (p. 228-270). Infante demonstra como os escritores modernistas podem ser um grande filão para entender a constituição da música popular nacional. Bons exemplos do que Infante analisa estão aqui e aqui.

Maurício de Carvalho Teixeira mostra em O avesso do folclore (p. 271-282) como um dos grandes escritores brasileiros – Mário de Andrade, que tinha também um claro programa estético para construir uma música brasileira de concerto, dialogava com a nova música popular urbana que vinha surgindo gravada em fonogramas. Mário de Andrade pensava o fonograma como uma ferramenta de registro do material folclórico que deveria ser coletado/preservado/reelaborado pelos intelectuais. Mas não esperava nem desejava que ele tornasse o que se tornou – um veículo comercial e difusor de uma música com a qual o escritor não tinha traquejo para lidar.

Transformar literatura em canção também pode ser um exercício interessante, como fazem Cláudio Henrique Sales Andrade – ao analisar uma poesia de Patativa de Assaré em forma de desafio de cantadores (p. 181-214), Luis Roncari – comentando a importância central de uma canção ouvida por Riobaldo em Grande sertão veredas (p. 283-295), ou ainda Alcides Villaça, que encontra a música adormecida na poesia Canção dos sinos de Manuel Bandeira (p. 296-301)

A relação entre música e literatura também pode ser feita pelo viés da antropologia, como faz João Camillo Pena em sua resenha que contrapõe os dois estudos de Hermano Viana – sobre o funk e sobre o samba. O autor da resenha confronta uma visão excessivamente conciliadora em Viana, quando propõe o samba como encontro de diferentes grupos étnicos e sociais, e como paradigma da mestiçagem ao estilo do que propunha Gilberto Freire como a grande marca do Brasil. Pena acredita que os conflitos e violências embutidos no processo não precisam e não podem ser omitidos na questão.

Walter Garcia, que já ficou conhecido por um livro que escreveu sobre João Gilberto, também faz uma abordagem antropológica do Racinonais MC’s, fazendo um convite ao conhecimento da obra cancional/literária deste grupo de rap paulista.

O número da revista é enriquecido por outros textos poéticos de Alice Ruiz (p. 80-84), Antonio Cícero (p. 302-303) e Carlos Rennó (p. 409-411), todos de alguma forma relacionados à canção. Outras resenhas incluídas no volume são a de A era dos festivais de Zuza Homem de Melo, por Joaquim Alves Aguiar (p. 382-386), a de Tropicalista lenta luta de Tom Zé, feita por Daniel Sampaio Augusto (p. 387-393) e a de Eu não sou cachorro não de Paulo César de Araújo, feita por Marcos Napolitano (p. 378-381). Há ainda um apêndice sobre os acervos e a preservação da música popular, escrito por José Geraldo Vinci de Moraes (p. 400-406). E finalmente o começo: o ponto alto da revista é o texto de José Miguel Wisnik sobre o conto Um homem célebre, de Machado de Assis.